Por que John Kerry está tão desesperado para conseguir uma reunião de emergência sobre a Síria, de repente, depois de quatro anos e meio de guerra?
Estará assim aflito porque a campanha aérea dos russos está varrendo número excessivo de jihadistas terroristas apoiados pelos EUA e sabotando o plano de Washington para depor o presidente Bashar al Assad da Síria? Ah, sim! Podem apostar que sim.
Ninguém que esteja acompanhando os eventos na Síria ao longo das últimas três semanas pode ter qualquer dúvida sobre o que realmente se passa ali. A Rússia está metodicamente varrendo mercenários que os EUA arma e paga para operarem no solo, ao mesmo tempo em que vai recapturando territórios que estavam perdidos para os mesmos mercenários e terroristas. Isso, por sua vez, fortaleceu a posição de Assad em Damasco e deixou em farrapos a política do governo dos EUA. Por isso, precisamente, Kerry tanto quer mais uma reunião com o ministro das Relações Exteriores da Rússia, o mais urgentemente possível (apesar de os dois terem-se encontrado a menos de uma semana!). O secretário de Estado espera conseguir alguma espécie de acordo costurado sobre a coxa, que ponha fim à matança de terroristas e salve o que resta do puído projeto sírio do Tio Sam.
Na 3a-feira, a agência Reuters noticiou que o Irã havia sido convidado para as negociações a se desenrolarem em Viena na 5a-feira. O anúncio será ferozmente criticado na colina do Capitólio, mas só faz mostrar até que ponto é a Rússia quem, hoje, determina a agenda. Foi Lavrov quem insistiu em que o Irã fosse convidado, e foi Kerry quem, relutantemente, capitulou. Agora, é Moscou quem ocupa a cabine de pilotagem.
E que ninguém se surpreenda se a reunião de Viena produzir também alguns resultados bem chocantes, como virada dramática de 180º na 'exigência' de Washington, de que "Assad tem de sair". Como Putin já assinalou várias vezes, Assad não sairá para canto nenhum. Ele será parte do "corpo de governo transicional" da Síria, quando afinal a equipe de Obama aceitar o Comunicado de Genebra, que é a trilha política que pode, eventualmente, levar ao fim do conflito, restaurar a segurança e permitir que milhões de refugiados voltem às próprias casas.
A razão pela qual o governo Obama acabará por aceitar que Assad fique, é porque, enquanto não aceitar, a Força Aérea Russa continuará a pulverizar mercenários terroristas pagos pelos EUA. Assim, como qualquer um vê, Obama realmente não tem escolha. É como se Putin lhe encostasse uma pistola na cabeça e lhe fizesse oferta irrecusável.
Não significa que a guerra será um mar de rosas para a Rússia ou seus aliados. Não será. De fato, há houve revezes consideráveis, como o ISIS ter conseguido tomar trecho crucialmente importante da autoestrada Aleppo-Khanasser, cortando as linhas de suprimento do governo para Aleppo. É problema grave, não é problema insuperável, nem é coisa que afete o resultado da guerra. É um dos obstáculos com os quais é preciso lidar e ultrapassar. Se se analisa de um ponto de vista mais amplo, o prognóstico é muito mais encorajador para a coalizão dos russos, que continua a cortar linhas de suprimento, a explodir depósitos de munição e combustível e vai rapidamente reduzindo a capacidade do inimigo para manter a guerra. Assim, embora sem dúvida a guerra não seja um mar de rosas, não há nenhuma dúvida de quem vencerá.
E isso pode explicar por que os EUA resolveram bombardear a principal usina de produção de eletricidade de Aleppo, com o que lançou a cidade na mais profunda escuridão: porque Obama obra para "escombrar"[1] tudo que apareça no caminho. Não esqueçam que as estações locais para tratamento de água exigem energia elétrica. Então, bombardeando a usina geradora, Obama condenou dezenas de milhares de civis ao cólera e outras doenças contraídas pelo contato com água não tratada.
Tudo sugere que nosso presidente bombardeador de hospitais não perde jamais o sono com coisas triviais como mandar matar mulheres e crianças. Agora vejam essa, do Daily Star, Líbano 22/10/2015):
"Forças da coalizão liderada pelos EUA no Iraque e na Síria executaram ataque em grande escala contra o campo de petróleo Omar, da Síria, como parte da missão de minar a capacidade de o ISIS fazer dinheiro, disse na 5a-feira um porta-voz da coalizão.
O major Michael Filanowski, oficial de operações, disse a jornalistas em Bagdá que os ataques da 4a-feira à noite atingiram refinarias de petróleo controladas pelo ISIS, centros de comando e controle e nodos de transporte no campo de Omar, próximo à cidade de Deir el-Zour. Porta-voz da coalizão, coronel Steven Warren, disse que o ataque atingiu 26 alvos, o que faz dele o maior conjunto de ataques desde o lançamento da campanha, no ano passado.
A refinaria gera entre $1,7 e $5,1 milhão/mês para o ISIS.
"Foram alvos muito específicos, que resultarão em incapacitação de longo prazo da habilidade deles para vender petróleo, extraí-lo do solo e transportá-lo" – disse Filanowski.
ISIS tomou várias refinarias de petróleo e outras instalações de infraestrutura no Iraque e na Síria, buscando gerar renda para construir estado autossuficiente" ("US-led forces strike ISIS-controlled oil field in Syria", Daily Star).
Não é mesmo enormíssima surpresa que agora – depois de um ano de varrer o deserto à procura de alvos no ISIS –, repentinamente a Força Aérea dos EUA afinal descobre onde se escondiam as malditas refinarias?! Não surpreende que até a mídia-empresa tenha optado por não comentar esses 'feitos'.
A única conclusão possível é que Obama nunca teve qualquer intenção de cortar o principal fluxo de dinheiro que sempre abasteceu o ISIS (venda de petróleo). A única coisa que Obama queria era que o grupo terrorista florescesse e prosperasse, desde que ajudasse Washington a alcançar suas metas estratégicas. Putin até já disse isso, emrecente entrevista:
"Os mercenários ocupam os campos de petróleo no Iraque e na Síria. Começam a extrair petróleo, e esse petróleo é vendido por alguém. Onde estão as sanções contra essas pessoas que vendem esse petróleo?
Alguém acredita que os EUA não saibam quem está comprando?
Quem está comprando o petróleo do ISIS não seriam os próprios aliados dos EUA?
Vocês não acham que os EUA tem poder para influenciar seus aliados? Ou será o caso de que os EUA não queiram influenciá-los?"
Putin jamais se deixou enganar pelo empreendedorismo do ISIS no campo da extração e venda de petróleo. Sempre soube que sempre foi pura farsa, desde o primeiro momento, desde quando o Financial Times publicou aquele artigo engraçadíssimo, no qual argumentava que o ISIS tinha seu próprio grupo de "caçadores de talentos", e oferecia "salários competitivos" para engenheiros com a "capacidade exigida", e estimulava "empregados potenciais" a procurarem o Departamento de Recursos Humanos do grupo, e preencher uma ficha."
Em entrevista ao NPR, a fantasista profissional a serviço do Financial Times Erika Solomon (autora da peça) explicou por que os EUA não podiam bombardear campos de petróleo ou refinarias. Eis o que ela disse:
"O que o ISIS fez foi encastelar-se no centro de controle do processo de extração, o que é muito esperto, porque não podem ser bombardeados lá. Causaria desastre natural (sic). Então eles extraem o petróleo e imediatamente o vendem a comerciantes locais – qualquer pessoa comum que possa comprar um caminhão onde possa instalar um tanque de petróleo."
Ora... com certeza essa 'organização' não foi suficiente para deter o major Filanowski, não é? Tudo indica que ele fez voar pelos ares as tais refinarias do ISIS sem nenhuma dificuldade ou preocupação 'ecológica', o que apenas comprova que o conto de fadas do tal "desastre natural" da Solomon é pura conversa fiada.
Mas se tudo sempre foi conversa fiada, nesse caso por que, de repente, a Força Aérea dos EUA decide acertar os alvos? O que mudou?
Eis aqui uma pista, de artigo que apareceu em RT exatamente um dia antes dos ataques norte-americanos que acertaram as refinarias:
"Para cortar as vias usadas pelo Estado Islâmico (EI, antes chamado ISIS/ISIL/Daesh) para entregar suprimentos do Iraque para a Síria, aviões russos bombardearam uma ponte sobre o Rio Eufrates – informou o Alto Comando russo.
A ponte sobre o Rio Eufrates perto de [cidade síria] Deir ez-Zor era ponto chave da cadeia logística [do EI]. Hoje, pilotos russos realizaram ataque cirúrgico contra o objeto" – informou o vice-comandante do Estado-maior da Rússia, coronel-general Andrey Kartapolov, na 5a-feira, em briefing de notícias, acrescentando que a rota pela qual o grupo terrorista recebia armamento e munições já não existe." ("Russian Air Force cuts offISIS supply lines by bombing bridge over Euphrates", RT)
Aí está: os russos explodem ponte crítica sobre o Eufrates, tornando impossível o transporte de petróleo e, em seguida, de repente, BUUM, os EUA entram em surto de não-deixe-pedra-sobre-pedra-até-onde-a-vista alcança. É coincidência?
Não, não é, de jeito nenhum, absolutamente não é coincidência. O que esse incidente sugere é que a todo poderosa CIA está metendo no saco o seu projeto-menina-dos-olhos na Síria e tomando o rumo da porta da saída. (Vale observar que o ISIS nunca foi franquia empresarial autossuficiente, que embolsaria milhão de verdinhas por dia só com vender petróleo, como a propaganda tenta fazer crer. Tudo aí é parte da cobertura de 'Relações Públicas' que opera para ocultar o fato de que aliados do Golfo e provavelmente operadores clandestinos da CIA estão pagando casa e comida e roupa lavada e munição para esses maníacos homicidas.)
Seja como for, a intervenção russa está obrigando Washington a repensar sua política para a Síria. Enquanto Kerry engata marcha a ré, para pôr fim aos combates, Obama sua a camisa para modificar a política de modo que acalme os críticos da direita, sem provocar confronto com Moscou. É cena de equilíbrio em corda bamba, mas a equipe de 'Relações Públicas' da Casa Branca acha que dará conta do serviço. Vejam o que diz a rede NBC News:
"O secretário da Defesa Ash Carter revelou hoje que os EUA iniciarão abertamente "ação direta em solo" contra as forças do ISIS no Iraque e na Síria.
Em depoimento à Comissão de Serviços Armados do Senado, na 3ª-feira, Carter disse "não deixaremos de apoiar parceiros capazes, em ataques oportunistas contra o ISIL (...) ou de conduzir diretamente essa missão, seja por ataques aéreos ou ação direta em solo" ("Sec. Carter: U.S. to Begin ‘Direct Action on the Ground’ in Iraq, Syria", NBC News).
Ouvido assim, soa muito pior do que é. Verdade é que Obama não tem estômago para o tipo de escalada que falcões-doentes-por-guerras (tipo Hillary Clinton e John McCain ) vivem a 'exigir'. Não haverá nenhuma "zona segura" nem "zona aérea de exclusão" nem qualquer tipo de provocação que gere risco de confrontação sangrenta com Moscou. Obama está à procura da melhor estratégia de livrar a cara que lhe permita sair logo de lá sem incorrer na ira mortal dos doidos-por-guerra em Washington. Não que seja fácil de acreditar, mas o secretário da Defesa Ash Carter apareceu com um plano que talvez opere o milagre. Eis o que se lê em The Hill:
"O secretário da Defesa Ash Carter na 3ª-feira descreveu novos modos como os militares dos EUA planeja aumentar a pressão sobre o Estado Islâmico no Iraque e Síria, depois de meses de críticas de que o governo não estaria fazendo o necessário para derrotar o grupo terrorista.
"As mudança que buscamos podem ser descritas pelo que chamo "Os 3 Rs" – Raqqa, Ramadi e Raids" – disse Carter em depoimento à Comissão de Serviços Armados do Senado.
Primeiro, Carter disse que a coalizão liderada pelos EUA contra o ISIS planeja apoiar forças sírias moderadas para atacar Raqqa – quartel-general e fortaleza do grupo terrorista e capital administrativa.
O secretário disse também que espera ativar outra via para equipar a Coalizão Árabe Síria, que consiste em cerca de uma dúzia de grupos.
"A velha abordagem foi treinar e equipar completamente novas forças fora da Síria, antes de mandá-las à luta; a nova abordagem e trabalhar com líderes selecionados de grupos que já estão combatendo contra o ISIL, e dar-lhes equipamento e algum treinamento a eles e apoiar as operações deles com força aérea" – disse ele.
Também disse que a coalizão espera intensificar sua campanha aérea com mais aviação dos EUA e da coalizão, e atacar o ISIS com taxa mais alta e mais pesada de ataques.
"Haverá mais ataques contra alvos de alto valor do ISIL, agora que nossa inteligência melhora, e também contra o empreendimento deles na área do petróleo, que é pilar crítico da infraestrutura do ISIL" – disse Cartar, usando outra abreviatura para o mesmo ISIS." ("Pentagon chief unveils new plan for ISIS fight" [Chefe do Pentágono revela novo plano para a luta contra ISIS], The Hill).
Algo de novo aí? NADA-búrguer dos grandes, certo? Vão matar mais "alvos de alto valor"?
Grande coisa! E não foi esse o plano, sempre, desde o começo? Claro que foi.
O que tudo isso mostra é que Obama está querendo ver se consegue manter toda essa confusão em fogo baixo, até que ele pule fora do governo e negocie os termos do seu primeiro grande contrato para livros de memórias. A última coisa de que Obama precisa é meter-se em briga de foice com o Kremlin, e logo no último ano de seu mandato.
Infelizmente, o problema que espera Obama é que Putin não pode simplesmente desligar a máquina de guerra, como quem desliga uma lâmpada. Moscou precisou de muito tempo até decidir-se a intervir na Síria, assim como precisou de muito tempo para comandar todas as forças a empregar lá, construir sua coalizão e construir o plano de batalha.
Guerra para os russos é assunto de extremíssima gravidade, e agora que puseram a bola em jogo não pararão até terem completado o serviço, e o núcleo duro reprodutivo dos terroristas tenha sido exterminado. Significa que não haverá cessar-fogo no futuro imediato. Putin tem de demonstrar que, quando Moscou compromete suas forças, o compromisso persiste até a vitória. Pode ser vitória em formato de "libertar Aleppo" e subsequente vedação completa da fronteira turco-síria, ou talvez Putin tenha outra coisa em mente.
Mas é também questão de credibilidade. Se Putin retrocede, hesita ou mostra um átomo que seja de indecisão, Washington verá ali um sinal de fraqueza e tentará explorá-lo. Assim sendo, Putin não tem escolha além de levar a coisa até o fim, amargo que seja. No mínimo, Putin precisa provar a Washington que, quando a Rússia envolve-se, a Rússia vence.
Essa é a mensagem que Washington precisa ouvir.*****
[1] Orig. "rubblize" neologia, de rubble [escombro] + sufixo formador de verbo –ize [-izar]. A expressão parece ter surgido em 2014, em discurso de representante Republicano que 'exigia' que Obama "rubblize" a Palestina. Tradução também neológica, igualmente horrível, pode ser "escombrizar" [NTs].