17/1/2019, Antonio Gonzalez Plessmann*, de Caracas (entrevista a Cira Pascual Marquina, Venezuelananalysis)
Traduzido pelo Coletivo Vila Mandinga
Venezuelananalysis: A chegada de Hugo Chávez ao poder foi acompanhada de uma enorme onda de participação popular. Por exemplo, o povo venezuelano mobilizou-se e participou da Assembleia Constituinte em 1999 (com sessões retransmitidas pela televisão nacional); envolveu-se com as campanhas de alfabetização, os Comitês de Terra Urbana e os Conselhos Comunitários. Com efeito, as pessoas tornaram-se sujeitos ativos de mudança. Hoje, pelo contrário, há uma lógica muito mais “de cima para baixo”, como se vê em projetos não participativos como a Gran Mision Vivienda Venezuela e uma Assembleia Constituinte fechada ao público. Pode explicar esta trajetória histórica?
Antonio Gonzalez Plessmann: Desde 1999, o protagonismo popular – juntamente com uma distribuição mais igualitária da riqueza e uma maior autonomia em relação aos poderes hegemônicos do mundo – foi um pilar do processo político. Os pobres subiram ao palco como agentes políticos. Era a essência da Revolução, sua vitalidade!
Entre 2009 e 2012, Chávez aumentou a aposta nesse projeto, que ele resumiu em 2012 com o slogan “Comunhão ou Nada”. Retomando as experiências anteriores de organização popular, Chávez assumiu que o sucesso da Revolução [Bolivariana] dependia da expansão dos espaços de autogoverno territorial: espaços onde as pessoas estavam criando novos tipos de socialidade a partir de baixo, com base em práticas econômicas e políticas mais democráticas.
Tudo isso fazia parte de um processo de construção do que Chávez disse que seria uma “teia de aranha” de organizações territoriais, visando a uma nova democracia socialista de tipo venezuelano especial. Foi uma grande experiência na promoção do poder popular a partir do Estado, e conseguiu mobilizar e elevar a moral de uma grande parte da população pobre do país. Tudo isso foi expresso de forma programática no Alô Presidente Teórico N° 1 [2009], no Plano Pátria 2013-2019 [2012] e no discurso “Golpe de Timón” [Golpe de Timão] [2012].
“Pelo socialismo. Comuna ou nada” |
Em 2013, no entanto, várias crises somaram-se para explicar por que o governo mudou de rumo em muitas questões, incluindo o poder popular. Por um lado, a morte de Chávez significou o fim da liderança carismática e estratégica que unificou diversos setores em torno de um programa popular. Por outro lado, houve uma queda drástica nos preços do petróleo (que durou de 2014 a 2016), o que dificultou nossa capacidade de importar os bens intermediários e finais que o país necessita.
É importante lembrar que, apesar de tudo o que foi feito em termos de inclusão social, a [Revolução Venezuelana] não modificou significativamente o aparato produtivo do país nos últimos 15 anos.
Em outras palavras: a economia rentista não se transformou na linha de um novo modelo esquerdista. Pelo contrário, nos tornamos ainda mais dependentes das exportações de petróleo, que eram 77% do total das exportações em 1997, mas 94% em 2014!
Outro problema estrutural, que se tornou muito evidente hoje, agora que o Estado tem menos recursos, é a corrupção generalizada dos políticos, com a maior parte da corrupção envolvendo o uso de acesso privilegiado à moeda estrangeira para fazer importações reais ou falsas.
No entanto, para além destes problemas estruturais, temos também de olhar para a forma como o governo geriu mal a economia entre 2013 e 2017, sobretudo não fazendo nada ou tomando apenas medidas de curto prazo. Além disso, vimos um ataque mais radical que veio da direita local e internacional. Essa gente viu a crise econômica e política do país como uma oportunidade não apenas para alcançar a mudança de regime, mas, acima de tudo, para ‘dar uma lição’ ao povo venezuelano. Sua ideia era “mostrar” o fracasso da revolução e provar a impossibilidade de qualquer esforço para superar o capitalismo por meios democráticos.
Com o declínio das forças progressistas da região, vemos a direita encenar protestos violentos em 2014 e 2017, rejeitar os resultados eleitorais em 2013 e sabotar a economia. Em seguida, vem um bloqueio encoberto e, mais tarde, um aberto, juntamente com a interferência dos Estados Unidos e outros governos de direita. Tudo isso tornou o governo [de Maduro] muito fraco desde a sua criação em 2013. O governo consegue permanecer no poder, mas não consegue superar a crise, para nem falar da manutenção do programa de transição democrática para o socialismo. Uma parte da liderança de Chávez assumiu o controle sobre o aparelho de Estado e do PSUV. Cerrou fileiras e promoveu expurgos, optando por uma estratégia que implica a eliminação progressiva dos espaços democráticos. Esse grupo legitima suas ações apontando para a guerra econômica e a conspiração da direita – que são muito reais – e depois se põe a limitar várias formas de expressão da vontade popular.
Isso ocorre em relação às questões de Estado. Exemplos incluem cancelar o referendo revogatório promovido pela oposição, adiar por um ano as eleições para os governadores, decidir não fazer um referendo popular para convocar a assembleia constituinte. Mas também acontece em espaços organizacionais populares. Em 2016, eles suspenderam as eleições dos Conselhos Comunitários em todo o país e, em 2017, a nova linha era que apenas os membros do PSUV podiam liderar essas instituições.
Paralelamente, a maior parte da ação social do governo concentrou-se nos Comités Locales de Abastecimiento y Producción, CLAPs e nos bônus [subsídios diretos]. Os Conselhos Comunitários foram ficando pelo caminho, nos espaços populares, porque as CLAPs geraram uma estrutura organizacional capilar baseada no que é mais importante para as pessoas: o acesso à alimentação. Diferentemente dos Conselhos Comunitários, onde a comunidade escolhe seus palestrantes e representantes, os porta-vozes da CLAP são designados pelo Estado e pelo partido.
Na prática, equivale a uma sabotagem liderada pelo Estado, dos Conselhos Comunais, enfraquecendo-os como espaços de poder popular. Com essa mudança, os Conselhos Comunais perderam o papel de interlocutores que lidam tanto com a comunidade como com as instituições; e os militantes foram convertidos em pessoas que trabalham principalmente com o Estado. Em 2017, o próprio Nicolas [Maduro] declarou que as CLAPs eram “a maior expressão do poder popular”.
Em resumo, a estratégia de sobrevivência do governo equivale a optar por formas organizacionais que são controladas de cima para baixo, que não têm autonomia e que são atravessadas pelos sistemas de despolitização do clientelismo. Os governantes estão abandonando o projeto de construção do socialismo a partir das bases. Essa [dinâmica], é claro, colide contra vários projetos Chavista desafiadores, que existem em todo o país. Os que trabalham nesses projetos agora estão conscientes de que “só o povo pode salvar o povo”.
Uma assembleia do conselho comunal no estado do Amazonas, Venezuela, expressão do poder popular e do autogoverno. |
Venezuelananalysis: O que você diz vai desde as comunas-modelos, como El Maizal e El Panal até iniciativas de autogestão, como oMovimiento de Pobladores ou o Exército de Trabalhadores da Produção. Como poderemos reativar o potencial revolucionário latente do projeto chavista, que com certeza sobrevive em nossa memória coletiva?
Antonio Gonzalez Plessmann: Em meio às muitas crises que nos afetam como país, como esquerdistas e chavistas, é importante que nos levantemos com orgulho, para defender nossa identidade chavista. Devemos lembrar que, como pobres e esquerdistas que lideraram a Revolução Bolivariana, conseguimos coisas importantes: nos tornamos sujeitos políticos, com consciência de classe e consciência de justiça, distribuímos a riqueza nacional de forma mais justa, melhoramos substancialmente nossas vidas, conseguimos uma política externa autônoma e rompemos com o mito de que não há alternativas à democracia liberal e ao capitalismo.
Mas não se trata de adotar uma atitude nostálgica em relação ao passado. Em vez disso, com base no que vivemos no chavismo, devemos interpretar a situação atual e pensar em saídas. Por exemplo, podemos contrastar a política petrolífera soberana de Chávez com as privatizações de fato que estão ocorrendo agora na PDVSA; e o questionamento de Chávez sobre o caráter racista e de classe das operações de segurança da Quarta República pode ser justaposto às execuções extrajudiciais que os grupos FAES da Polícia Nacional Bolivariana e outras forças [de segurança do Estado] realizam hoje em dia nos bairros populares.
Dessa forma, levantando-nos orgulhosamente como chavistas, podemos questionar desvios políticos do projeto que assinamos, que nos pertence como povo e que nos permitiu melhorar nossas vidas. A partir dessa mesma posição, também podemos sair ao encontro dos setores populares que hoje estão nas ruas reivindicando seus direitos: por exemplo, trabalhadores reivindicando seus direitos trabalhistas, comunidades populares insistindo nos serviços públicos, doentes reivindicando seu direito à saúde, camponeses reivindicando seu direito à terra para produzir alimentos e segurança para suas vidas e integridade, etc.
Hoje o programa Chavista de poder popular já não pode contar com o Estado como aliado, como aconteceu no passado. Reconhecer isso é o primeiro passo. Cabe às bases chavistas promover esse projeto e fazê-lo a partir de baixo. Para construir o poder popular, não é preciso pedir permissão a ninguém, nem é necessário ter o apoio das instituições ou sua legitimidade. De fato, em um contexto global, a Venezuela foi uma exceção, porque o poder popular é [geralmente] algo que é construído fora do Estado ou em oposição a ele.
Uma coisa que é fundamental para reviver a participação hoje é que nossas ideias programáticas estejam conectadas a resultados materiais. Os projetos organizacionais e os esforços coletivos devem estar sempre associados à solução material dos problemas diários. Eles devem demonstrar que é possível fazer valer seus direitos como resultado da auto-organização, solidariedade, participação direta e plural, mobilização e insistência para que o Estado e outras potências cumpram seus deveres.
Neste momento, não há espaço para qualquer discurso político abstrato baseado apenas em propostas globais – dirigidas à sociedade ou à situação política – que não venha de mãos dadas com a solução de nossos problemas imediatos. O poder político e a credibilidade giram em torno da resolução de problemas concretos mediante nossa auto-organização e acompanhada por processos de ensino democráticos. Em tudo isso, é importante que as organizações populares alcancem uma capacidade econômica que aumente sua autonomia.
Venezuelananalysis: Os projetos que você menciona, junto com alguns outros, estão merecidamente sob os holofotes, porque se baseiam em práticas concretas reais – não em plataformas ou resultados de curto prazo que derivam de financiamentos transitórios. Esses projetos têm amplo apoio social, porque neles trata-se de pessoas que fazem mudanças profundas em seu cotidiano.
Antonio Gonzalez Plessmann: Por último, penso que é necessário construir ligações horizontais em todo o amplo espectro de projetos que são todos expressões do poder popular; porque, se permanecerem isolados, serão derrotados. Ligá-los requer humildade, maturidade política e uma lógica pluralista que nos permita abordar democraticamente nossas diferenças. Devemos construir confiança entre os diversos setores do chavismo popular, de esquerda, e devemos construí-la com base em fazer as coisas juntos, começando com pequenas coisas e depois voltando para as maiores.
Este setor de esquerda popular, embora atualmente não constitua uma força política nacional, tem uma incrível autoridade moral. Isso significa que poderia ser a base de uma regeneração chavista que relançasse o programa socialista, o programa do poder popular.
Venezuelananalysis: Você é um participante ativo de uma iniciativa popular auto-organizada em San Agustín, um bairro operário de Caracas. Pode nos falar dessa experiência?
Antonio Gonzalez Plessmann: Faço parte do coletivo SurGentes, que há quatro anos trabalha com organizações populares em San Agustín del Sur. É um grupo de mulheres do coletivo que fazem o trabalho direto no bairro, e o fazem com muita paixão e espírito revolucionário. Junto com pessoas (principalmente mulheres) de onze bairros de San Agustín, construíram a cooperativa Unidos San Agustín Convive, que distribui hortaliças duas vezes por mês, a preços mais de 70% abaixo dos preços de mercado. Isto é possível mediante uma aliança com os produtores associados da rede Pueblo a Pueblo. Desta forma, contornamos as máfias de distribuição e outros intermediários, reunindo pessoas das zonas rurais e da cidade.
A cooperativa é muito cuidadosa com seus processos internos, que são baseados na democracia, pluralismo, transparência, prestação de contas e politização dos militantes. Já vimos que muitos chavistas (e não chavistas) perdem o interesse na organização popular, quando veem que há privilégios na distribuição de recursos. Ou seja, os “representantes” da comunidade têm acesso preferencial ao Estado e impõem decisões, esmagando o protagonismo popular.
O fato de que os membros de nossa coletividade tenham sido muito cuidadosos em respeitar o processo [democrático] é que tem permitido que a cooperativa cresça e se enraíze na comunidade. As pessoas percebem que a política aqui está sendo feita de outra forma. Estamos demonstrando, às vezes em choque com a burocracia, que no meio da crise é possível crescer e acumular forças. Além de melhorar a dieta das pessoas, estamos aumentando sua consciência política mediante práticas democráticas que fazem parte do projeto socialista chavista. Tudo isso, sem excluir ninguém.
Agora temos um caminhão, doado pela ONA, e recursos para consertá-lo, e começamos uma oficina de tecidos que está gerando renda para a cooperativa e seus trabalhadores. Também temos creches autofinanciadas três vezes por semana, além de administrar uma pequena fazenda agroecológica. Finalmente, estamos em permanente comunicação com outros movimentos e coletivos que promovem o poder popular tanto em áreas urbanas como rurais.
Unidos San Agustin Convive distribui frutas e vegetais a cada 15 dias, a preços mais de 70% abaixo dos preços de mercado (Supuesto Negado). |
Venezuelananalysis: Agora as pessoas estão começando a fazer um olhar crítico sobre todo o ciclo progressivo (às vezes chamado de “Maré Rosa”) que tomou forma no início deste século na América Latina. Alguns analistas e grupos estão concluindo que foi um erro ter provado o fruto proibido do poder estatal. Pelo que entendo, você discorda desse ponto de vista.
Antonio Gonzalez Plessmann: Atualmente há um setor da esquerda intelectual latino-americana que, ao fazer um balanço dos chamados processos “progressistas” da região, conclui que “não valeu a pena”, porque hoje somos mais dependentes, mais extrativistas e menos democráticos do que antes. Essa análise vai de mãos dadas com uma espécie de afastamento do Estado. Em vez disso, devemos nos comprometer com a comunidade e com os projetos que surgem dos movimentos sociais.
Meu objetivo aqui não é apresentar esses argumentos de forma redutiva, pois acredito que eles são importantes e necessários para as discussões internas da esquerda. Os argumentos são muito mais complexos do que aqueles que menciono aqui. Resumo aqui brevemente a posição, só para explicar minha discordância com a ideia de nos afastar do Estado. Isto porque, apesar de hoje ser claro que tomar o poder não é o mesmo que controlar o Estado (que é a coisa chave numa revolução); ainda assim, na minha opinião, a mera acumulação de forças a partir de baixo não pode assegurar mudanças sustentáveis e estruturais.
A direita nunca renunciou ao poder estatal, porque o Estado continua sendo o locus de uma densa rede de relações de poder que cruzam a sociedade. Afastar-se do Estado é perder o jogo por desistência. Os processos de mudança social devem ser realizados “de cima” e “de baixo”, sem virar as costas a estes espaços contestados.
Nem, apesar das enormes complexidades que significou para o processo venezuelano, devemos nos envergonhar de que o próprio Estado tenha promovido a organização (isto é, “de cima”). Isso inevitavelmente levou a uma tendência para domar e controlar [o movimento popular], muitas vezes mediante práticas de clientelismo. Mas também precisamos ter claro que foi devido a esse apoio do Estado – uma decisão política da Revolução Bolivariana – que a maior experiência de organização e participação popular do país pôde acontecer.
O que as pessoas aprenderam neste processo de politização – embora naquela sopa de autonomia, rebelião, patrocínio e docilidade que se desenvolveu nestes dias em torno do Estado – é coisa grande e muito importante. O mesmo vale para o uso “político” do petróleo (administrado pelo Estado venezuelano) para distribuir riqueza internamente e promover espaços de autonomia em toda a região. Como dizemos na Venezuela: nadie nos quita lo bailao (aprendemos a dançar e ninguém nos tirará a jinga), no sentido de que ninguém pode tirar o que aprendemos de nós, embora haja muito que precisamos avaliar criticamente, para aprender ainda mais da nossa própria experiência.*******
* Antonio Gonzalez Plessmann é graduado por universidades da Venezuela e do Equador, é militante da esquerda pelos direitos humanos desde os anos 1980s. Ex-vice-reitor da Universidade Nacional Experimental de Segurança, participou no processo de reforma das polícias iniciado em 2006. Hoje, Gonzalez Plessmann trabalha integrado ao coletivo SurGentes e ao projeto Pueblo a Pueblo no bairro San Agustin, em Caracas.
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