(Porque o gato CAATSA** comeu a língua deles)
29/1/2018, John Helmer, Dances with Bears, Moscou
Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu
Quando soou meia-noite em Washington, DC, e 29 de janeiro virou 30 de janeiro, quando terminava o prazo para que o governo dos EUA apresentasse relatório ao Congresso listando oligarcas russos próximos do presidente Putin a serem atacados por novas sanções, tudo mergulhou na escuridão. Nenhum cão latiu.*
Necessário – nos termos da Lei CAATSA (sigla [ing.] de Countering America's Adversaries Through Sanctions Act [Lei das Sanções contra Adversários dos EUA]), assinada pelo presidente Donald Trump em agosto passado –, o relatório dos oligarcas não apareceu a tempo. Como ele, tampouco apareceram três outros relatórios (um, das sanções geradas por problemas da dívida soberana russa; outro, das sanções geradas por negócios com o setor russo de Defesa; e ainda outro, gerado pelo muito que bancos estatais russos e detentores de títulos públicos russos reestatizaram setores chaves da economia russa como banking, seguros, imobiliário e portos.
Não apareceram nem press releases nem saídos da Casa Branca, nem do Tesouro dos EUA, nem do Departamento de Estado. A Comissão de Assuntos Exteriores da Câmara de Deputados e a Comissão de Relações Exteriores do Senado, responsáveis pela aplicação da Lei CAATSA, nada disseram sobre o que teria acontecido ou deixado de acontecer. Apesar do surto midiático antes de se esgotar o prazo, antecipando as dúzias e dúzias de oligarcas russos a serem 'punidos' por novas sanções que os EUA imporiam... nenhum jornal importante nos EUA, nem um, que fosse, nem 'âncora' conhecido, noticiou o fato espantoso de que a lista não apareceu.
Na 2ª-feira cedo em Moscou, o porta-voz de Putin Dmitry Peskov anunciou que o Kremlin ainda não recebera a lista dos oligarcas, mas que, se os EUA levassem adiante aquela guerra econômica, o presidente Putin reagiria. "A publicação dessa lista nada significa per se. Como os senhores sabem, não é outra onda de sanções. Contudo, temos de analisar, claro, as ações que podem decorrer desse relatório. Moscou analisará essas ações, para garantir proteção máxima aos nossos interesses e em todos os casos aos interesses de nossas empresas."
Na segunda de manhã, em Washington, a CNN noticiou: 'O Departamento do Tesouro planeja movimentar-se hoje para emitir um relatório que levará o processo um passo à frente' – disse ao programa New Day da CNN o primeiro vice-secretário de Imprensa da Casa Branca Raj Shah (...) Funcionário da Casa Branca disse à CNN no meio da manhã de 2ª-feira que todos lá esperam que o relatório liste os indivíduos que violaram a lei."
Depois do almoço, na Casa Branca, Sarah Sanders, secretária de imprensa, ouviu a pergunta de um repórter: "Pode por favor informar o que vai realmente acontecer hoje, e se haverá mesmo lista pública de oligarcas? E quanto às sanções, acontece o quê? Publicarão alguma coisa, parte da lista, pelo menos?"
Sanders respondeu: "Esperamos os relatórios para hoje. Sobre o que acontece, melhor você perguntar ao Departamento do Tesouro, se precisar de detalhes... Estamos coordenando os movimentos, e posso dizer que as sanções vêm à frente de tudo. Sobre cronograma das ações, sugiro que consulte o Departamento do Tesouro."
Alguns cães da guerra se agitaram, como se planejassem ladrar nas horas seguintes, com quatro senadores e deputados do Partido Democrata insistindo (guerra, guerra, guerra, guerra à Rússia, guerra a Trump). Em carta a Trump, eles dizem:
"lembramos que se aproxima o dia 29 de janeiro, data limite para o cumprimento de três ações ordenadas nos termos da lei [CAATSA]: impor sanções contra setores da Defesa e da Inteligência [da Rússia]; divulgar relatório do Departamento do Tesouro em que se examinem as implicações de sanções geradas pela dívida soberana da Federação Russa; e divulgar relatório do Departamento do Tesouro sobre oligarcas e entidades paraestatais da Federação Russa (...) Embora compreendamos a necessidade de o relatório incluir um anexo sigiloso, confiamos em que V.Excia. [Trump] cuidará de cumprir a lei e não impor sigilo ao corpo do relatório, de modo a que os cidadãos norte-americanos possam construir melhor compreensão de como opera o sistema da Federação Russa."
Nada. A Casa Branca, o Tesouro e o Departamento de Estado continuaram mudos e surdos. Um assessor de imprensa do Departamento do Senado disse a um repórter do website Politico.com que, depois de horas de idas e vindas entre funcionários e deputados e senadores, um documento geral foi acertado com o Congresso, acompanhado de um anexo. Mas tão absolutamente sigiloso, que o conteúdo não pode ser citado nem publicado.
Politico.com noticiou que porta-voz não identificado do Departamento de Estado teria escrito em mensagem de e-mail que o governo Trump está
"usando essa lei, agora que o Congresso resolveu pressionar a Rússia para que dê atenção às nossas preocupações relacionadas à agressão à Ucrânia, à interferência em assuntos internos de outras nações e a abusos de direitos humanos."
[Alvos potenciais de futuras punições, incluindo governos não russos, militares e outros compradores de armas] "foram avisados, tanto publicamente como privadamente, inclusive por funcionários do mais alto nível do Departamento de Estado e outros funcionários do governo dos EUA quando adequado, de que transações significativas com entidades russas listadas resultarão em sanções (...) Dados os longos prazos sempre associados a contratos da Defesa, os resultados das medidas só podem hoje começar a ser percebidos. Desse ponto de vista, se a lei funcionar, não será necessário impor sanções a entidades específicas e a indivíduos, porque a lei já está, de fato, servindo como agente de contenção."
Esse e-mail parece ser o relatório não sigiloso enviado ao Congresso, citado numa série de tuítos de Politico; a lista de tuítos pode ser acompanhada aqui.
Segundo Politico.com, o Departamento de Estado teria também dito ao Congresso que "como os senhores sabem, não alertamos ninguém sobre nossas ações de sanções. Se e quando tivermos sanções a anunciar, anunciaremos." O texto de Politico nada diz sobre os demais relatórios que eram esperados, sobre os oligarcas, a dívida soberana da Rússia e a reestatização de bancos, etc., que teriam de ter sido produzidos pelo Tesouro.
6ª-feira passada, o Tesouro anunciou sanções contra alvos russos e da Novorrússia, relacionadas ao conflito na Ucrânia e à guerra na Síria. O press-release relacionado a essas sanções pode ser lido aqui.
Ninguém disse a Politico, nem Politico perguntou, nem ouviu de vazadores, se alguma lista de nomes de oligarcas ou de sanções geradas pela dívida soberana russa algum dia chegaram ao Congresso, para cumprir o que determina a Lei CAATSA:
"Permanecem dúvidas [leia-se NÃO SABEMOS] se o governo já distribuiu ou planeja distribuir os relatórios sobre oligarcas e dívida soberana da Rússia que teriam de ser distribuídos na 2ª-feira, ambos muito provavelmente incluindo informação top secret (...) Mais detalhes no relatório sigiloso encaminhado ao Congresso."
Apareceu um documento, supostamente emitido pelo Tesouro, de duas páginas, entregue a repórteres selecionados nas primeiras horas da 3ª-feira; não é sigiloso e pode ser lido na íntegra aqui. Anexada a esse documento há uma lista de sete páginas, não secreta, de nomes.
Segundo esse documento apresentado como emitido pelo Tesouro, a listagem de funcionários próximos de Putin não passa de transcrição direta de catálogos do governo russo e de empresas estatais russas. Listam-se no total 94 nomes.
Faltam três nomes da lista de funcionários do Estado – Anatoly Chubais, presidente de Rusnano, a holding estatal russa de tecnologia; Alexei Kudrin, do Conselho de Especialistas do Kremlin; e Mikhail Abyzov, Ministro do Governo Aberto [ing. Open Government]. Para saber o quanto são conhecidos como tradicionais amigos íntimos de todos os planos dos EUA para 'mudança de regime' em Moscou, podem começar por aqui.
Um 4º nome chama a atenção pela ausência na lista de funcionários russos a serem punidos com sanções dos EUA: Sergei Frank, presidente dos estaleiros estatais Sovcomflot; a intimidade corrupta entre Frank e o Kremlin está documentada em uma década de processos por corrupção movidos contra ele na Grã-Bretanha. Para saber do passado de Frank, inclusive de suas relações promíscuas com a petroleira Chevron, dos EUA, clique aqui. A ausência de Frank chama a atenção na lista do Tesouro, porque todos os outros presidentes de empresas estatais seus contrapartes (presidente da estatal de transporte aéreo, Aeroflot; da indústria estatal aeroespacial, United Aircraft Corporation; das Ferrovias Russas e da Transneft, estatal russa de oleodutos), lá estão, na lista, nome a nome.
A identificação dos oligarcas, diz o documento do Tesouro, foi feita a partir de "informação recolhida de fontes públicas confiáveis de que são proprietários de riqueza equivalente a $1 bilhão ou mais". São 97, na lista dos oligarcas.
A inteligência do governo dos EUA não identifica suas fontes. Mas parece que consultaram a revista Quem é Quem, editada pela Forbes russa, e outras listas publicadas em revistas russas de "Mais Ricos", além, claro, da lista do cerimonial do Kremlin, para o jantar de Natal dos oligarcas. Vários nomes que aparecem na lista do Tesouro são indivíduos já caídos em desgraça há anos, que já não se aproximam do Kremlin. Dentre esses Yelena Baturina, Andrei Skoch, Dmitry Rybolovlev, Yury Shefler, or irmãos Ananievs, Kirill Shamalov e Vladimir Yakunin.
A análise desses nomes mostra claramente que a inteligência dos EUA trabalha com dados obsoletos. Shamalov, penúltimo nome da lista, é conhecido por ter perdido quase todas as suas propriedades no processo de divórcio, ao final de seu casamento com Katerina, filha de Putin. O último nome, ex-presidente das Ferrovias Russas, foi, sim, amigo de Putin. A história de como e por que foi expulso do círculo de amizades da família Putin pode ser lida aqui. Os serviços de inteligência dos EUA, parece, não fizeram a lição de casa. Tampouco sabem soletrar o primeiro nome do infeliz. Aparece no posto n. 94, como "Vadim Yakunin."
O documento do Tesouro diz que considerou "riqueza líquida" [ing. "net worth"]. Significa que os agentes de inteligência dos EUA e seus informantes russos que forneceram informação bruta para o trabalho do Tesouro não sabem o quanto aquela lista de oligarcas devem a bancos russos e estrangeiros; a parcela do patrimônio de cada um que está empenhada para garantir dívidas. Não sabem sequer se a "riqueza líquida" daqueles homens e mulheres é positiva ou negativa.
E como se não bastasse, há também o adendo que garante luz verde aos bancos de investimentos dos EUA, para que continuem a fazer negócios com aqueles oligarcas, como se os EUA não estivessem tentando inventar uma guerra contra a Rússia [leia aqui (ing.)].
O único press release emitido pelo Departamento de Estado sobre a Rússia, na 2ª-feira, foi um 'protesto' segundo o qual um avião da Força Aérea Russa interceptou uma aeronave da espionagem norte-americana no Mar Negro, com uma manobra próxima demais, que gerou tamanha turbulência que teria constituído "prática militar não segura dos pilotos russos". "É o mais recente exemplo de atividades militares dos russos que desconsideram normas e acordos internacionais. Exigimos que a Rússia cesse a prática dessas ações não seguras, que aumentam a probabilidade de erro de cálculo e de colisões aéreas, e o perigo para as tripulações dos dois lados".
Na versão do Pentágono para a interceptação, o avião da Marinha dos EUA foi "até forçado a encerrar prematuramente a missão."
Na avaliação consensual entre funcionários russos em Moscou, aquela ação de contramedida forte e efetiva, além de impedir que prosseguisse a espionagem, também acabou de convencer o Departamento de Estado e o Tesouro a encerrar prematuramente também a missão CAATSA – e a não apresentar os relatórios que a lei exigia para o dia 29/1 passado.
"Os oligarcas não ganharam a batalha, por terem escapado da 'justiça' dos EUA" – como ouvi de uma fonte que sem dúvida sabe do que fala. – "E Putin nada perdeu nesse round. Os EUA estão tateando. As regras do jogo dessa guerra econômica ainda não estão definidas. Continuam os testes."*****
** Trocadilho intraduzível entre "cats" [gatos] e CAATSA sigla [ing.] de Countering America's Adversaries Through Sanctions Act [Lei das Sanções contra adversários dos EUA], assinada por Trump dia 2/10/2017, Public Law 115-44, que, dentre outras medidas, deve impor novas sanções contra o Irã, Rússia e Coreia do Norte [NTs].
* O 'cão que não latiu' é famosa 'pista' que permitiu identificar o ladrão que roubou o garanhão "Estrela de Prata" e descobrir a causa da morte de seu treinador, no conto "A aventura do Estrela de Prata", de Sherlock Holmes
(1892). Holmes deu-se conta de que cão de guarda que não lata é sinal de que só gente conhecida do cão estivera na cena do crime naquela noite.
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