segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Emmanuel Macron: o liberalismo autoritário, por Jean-Luc Mélenchon

30/1/2017, Jean-Luc Mélenchon, L'Ère du Peuple


Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu




"Verdadeiro liberal". Assim a esfera midiática descreveu e consagrou Emmanuel Macron na fase de acesso ao poder. Significava que Macron aproveitaria uma política econômica de inspiração patronal, mas seria vigilante e aberto às liberdades públicas e individuais. Esse é o maior e mais grave mal-entendido do momento político. 

Os meses decorridos só mostram uma realidade: o liberalismo econômico nada acrescenta à liberdade. Já não pode acrescentar coisa alguma à liberdade. O liberalismo econômico atropela a liberdade. Não apenas porque assim o deseje, mas porque não pode fazer diferente. Por baixo desse tema há raízes profundas. Mas o contexto acrescenta uma especial violência ao código genético.
 
Os "liberais" agem como se a liberdade só tivesse lugar fora da aplicação das regras hoje ainda "rígidas" demais, não suficientemente "flexíveis", e que trancariam com cadeado as energias que se deveriam "libertar" urgentemente, de todas e quaisquer regras. Fundamentalmente, as regras seriam, para eles, entraves ao 'livre-jogo' do mercado. Para eles, é grave. Porque o que está em jogo é a possibilidade de o mercado permitir a emergência do tal ponto de equilíbrio espontâneo, que só a maior e 'mais livre' circulação das mercadorias e do dinheiro poderia criar espontaneamente.

Por nosso lado, acreditamos, ao contrário disso, que só há liberdade sob as regras que organizam o exercício da liberdade e possibilitam a própria liberdade. Para nós, a "liberdade" sem regras, por alguma via espontânea, sempre será liberdade só para o mais forte. No fundo, temos uma visão "materialista" da liberdade (materialista em sentido filosófico). Para nós, "liberdade" é o exercício da liberdade. As condições do exercício da liberdade são, portanto, essenciais. Liberdade se pratica. Liberdade resume-se no fundo à capacidade de cada um tomar livremente uma decisão, e de poder pôr em prática aquela decisão. E isso só é possível em espaço no qual esteja organizado o exercício de todas as liberdades. 

Uma boa fórmula diz "a liberdade de cada um acaba onde começa a liberdade dos outros". Mas a liberdade dos liberais torna impossível a liberdade de cada um, porque todos sempre estão postos sob o tacão dos mais fortes. E quando esses princípios aplicam-se à esfera política, as consequências não são só filosóficas.

O produtivismo é um grande redutor das liberdades coletivas. Porque as consequências de longo prazo do produtivismo fecham todas as possibilidades da ação futura; assim, fecham todas as possibilidades de qualquer decisão livre. Poderemos fazer cada vez menos, sempre menos, num mundo dominado por eventos climáticos extremos, envenenado por resíduos atômicos ativos durante milênios, quando numerosas espécies e paisagens estarão sempre desaparecendo. E assim por diante.

O mesmo se vê no plano social. O caso da destruição da legislação do trabalho é esclarecedor. Para "liberar as energias", Emmanuel Macron cassou a prioridade que era da lei, quer dizer, a lei comum, em matéria de direito do trabalho. Já não há lei alguma, por exemplo, que regule os contratos curtos e precários. Acordos negociados empresa por empresa poderão baixar os salários suprimindo os ganhos por tempo de serviço, o 13º salário, etc. E como a lei reduziu também o peso dos sindicatos, ela aumenta o desequilíbrio que existe entre salários e empregadores.

A legislação do trabalho estabelece um conjunto de proteções para os indivíduos, contra o trabalho precário e sub-remunerado. Sem essas proteções, o trabalhador estará automaticamente ainda mais exposto às contingências da economia, às exigências do rentismo, segundo as flutuações imprevisíveis do mercado. Esse trabalhador será limitado. Perderá autonomia. Será portanto menos livre. 

Que liberdade teria o trabalhador e a trabalhadora que já não sabe se terá trabalho semana que vem? Que liberdade teria um trabalhador ou trabalhadora cuja única pensamento é se conseguirá ou não suprir as necessidades elementares de sua família, com o salário reduzido e com a conta no vermelho já no dia 15 do mês?

No pensamento do liberalismo, do mercado, a ação egoísta dos indivíduos seria a única ação eficaz, porque só ela seria capaz de alocar eficazmente a riqueza; só ela visaria a um interesse imperativo o qual, somado a outros, seria o verdadeiro interesse geral e responderia aos desejos de todos. O Estado seria incapaz dessa eficácia nas decisões porque agiria por princípios e regras que decorrem de um suposto interesse geral que ninguém poderia saber qual seja. Por essa ótica, a decisão do Estado seria sempre ideológica. 

Para esses liberais, o gasto público é o maior e eterno inimigo. A isso se soma uma obsessão com pagar a dívida pública. Pagar a dívida pública vira imperativo categórico, que se sobrepõe a qualquer outra consideração. Na verdade, os liberais veem nesse pagamento um uso justo da poupança e da propriedade privada, um direito sagrado inalienável, que põem acima de qualquer lei ou norma. Naturalmente, esse discurso só serve para propaganda e para encobrir a ditadura do dinheiro. 

Na vida real, "a poupança dos investidores" ama ver-se apostada em dívidas de Estados, porque o Estado nunca acaba, nunca some, está sempre presente e pagante. Os investidores amam as encomendas que o Estado faz ao setor privado, porque só o Estado é comprador todo-poderoso, e só os serviços que o Estado encomenda e paga garantem às marcas privadas a visibilidade de que precisam para o médio e o longo prazo. 

Mas esse discurso só aparentemente 'legalista' permite impor políticas públicas que não interessam necessariamente à maioria. 

E, por fim, essa lógica impõe uma 'austeridade' [a palavra correta é "arrocho" (NTs)] nos serviços públicos, únicos que podem garantir a todos os direitos sem os quais a "liberdade" é menos que uma palavra: é nada.

Vê-se no domínio da saúde. A deterioração do hospital público, dos desembolsos para a seguridade social levam cada vez mais cidadãos a renunciar a qualquer atendimento médico, por razões financeiras. Na França, esse número já chega a algo ¼ e 1/3 da população. 

Negar o direito à saúde é com absoluta certeza diminuir a liberdade individual, à medida que aumenta a proporção de incapacitados temporários ou permanentes por doenças não tratadas. 

O mesmo mecanismo vê-se na educação. A cruzada incansável contra o gasto público leva à falta de vagas nas universidades públicas. O interesse geral é que cada vez mais jovens formem-se em grau superior. Porque assim se eleva o nível de qualificação da população e, portanto, da produção. Mas as universidades públicas já não conseguem manter-se. Como solução, para criar um mercado dos saberes e, assim, aumentar a concorrência entre instituições distribuidoras de diplomas – não de competências –, o governo acaba com a liberdade de os jovens escolherem o que querem estudar. E escolher o que quer estudar, para um jovem, é escolher a própria vida adulta. Essa é liberdade fundamental, que o liberalismo rouba dos jovens.

E claro que, no final das contas, a equação funciona. As receitas que os liberais impõem geram sociedades muito desiguais, nas quais os fortes impõem o próprio interesse aos mais fracos. Em 2017, 82% das riquezas produzidas no mundo foram capturadas pelo 1% mais rico da população. Na França, 32 bilionários possuem o mesmo que 27 milhões de cidadãos comuns. 

Manter uma ordem tão desigual exige controle cada vez mais feroz sobre os humilhados e oprimidos dos estratos inferiores de renda. A construção de uma ideologia dominante radicalmente fechada e violenta tem o objetivo de reduzir "o tempo cerebral disponível" no mundo das preocupações e das hierarquizações consumistas. 

Das pequenas escalas individuais íntimas de escolhas de consumo, aos graus mais elevados de decisão que fixa normas e leis, cada nível está conectado ao que está antes e ao que vem a seguir. O objetivo da política é controlar as pessoas para que aceitem "a concorrência livre e sem distorções" como se fosse do interesse de todos, por mais que ela não produza coisa alguma além de limites à liberdade dos fracos, na luta contra a liberdade dos fortes.

Emmanuel Macron organiza o sistema político que corresponde àquele objetivo. Ele organiza as instituições e os mecanismos de decisão pública para alinhá-las ao mesmo diapasão. E ele encadeia as propostas liberticidas para controlar os indivíduos. Só a existência de tais "regras" já trás mensagem clara: cada um é culpado da miséria em que viva. Trata-se pois de orientar as pessoas na direção de decisões boas, que as salvarão das consequências das decisões más. A liberdade dos indivíduos é assim posta em quarentena, para o bem deles mesmos. Todos os campos e espaços são atingidos. Nessa linha, os desempregados devem pagar o preço do próprio desemprego com a máxima frequência possível e devem ativamente participar do serviço de vigiarem-se eles mesmos, uns os outros. Os movimentos sociais e todos que se mobilizem a favor dos pobres são reprimidos: gás lacrimogêneo, granadas de mão e armadilhas pelas ruas, retórica 'pró-segurança pública' contra os zadistas[1], processos judiciais contra quem ajude refugiados. 

Quanto à liberdade de expressão, sob a fachada de ser necessário combater 'notícias forjadas' [ing. fake news], o presidente Macron propõe mais e mais controle sobre a Internet, contra qualquer liberdade de expressão. É ajudado nisso pelos gigantes da informática que mudam os próprios algoritmos e assim impedem o acesso a algumas informações. A redução da liberdade para que circulem informações e análises de natureza socialista ou de protesto e resistência já pode até ser mensurada nos EUA; sabe-se que 40% dessa redução é efeito da ação da empresa Google. Sociedade desigual e que não aspira à igualdade é necessariamente sociedade que tem de controlar, vigiar e reduzir as liberdades públicas, para assim manter uma ordem aberrante que oprima suficientemente as maiorias a ponto de arrancar delas o consentimento ativo.

A equação liberalismo = menos liberdade aplica-se não só aos indivíduos, mas também aos povos. O princípio da soberania popular significa que os povos têm liberdade para escolher o próprio destino. Nosso regime político e institucional afasta-se cada vez mais desse princípio. A União Europeia nos impõe escolhas que nós não queremos. O voto do povo sobre o tratado constitucional de 2005 foi violado, os tratados sobre orçamento condicionam as políticas públicas, a gestão da moeda está fora do alcance de qualquer decisão popular. 

A prática do poder de Emmanuel Macron constitui um novo endurecimento autoritário. Ele obedece à palavra de ordem de Junker: não há democracia possível fora dos tratados europeus. No nível europeu, é sempre o mesmo velho condomínio franco-alemão, camisa de força para servir aos interesses dos rentistas alemães. No nível nacional, o Parlamento é o alvo. E é por aí que começou o quinquênio, com a aprovação da principal reforma vinda do governo Macron. A mão de ferro aplicou-se evidentemente primeiro nas próprias fileiras, os deputados da maioria receberam ordens de não expor qualquer opinião divergente, a reforma da universidade já está vigente, antes mesmo de ter sido votada na Assembleia e no Senado.

Já começou a reforma da Constituição. Uma ampla campanha de perseguição e calúnia contra parlamentares já está em andamento em todos os veículos da mídia que pertence à oligarquia francesa. Assim se 'prepara' a opinião dos cidadãos

A insistência incansável durante oito dias, em pleno mês de julho, sobre uma suposta 'lei de moralização' do Parlamento, foi a ferramenta para intimidar todos os eleitos; e eles logo deixaram passar as torpezas de alguns, para salvar as taras do sistema. Assim, uns e outros também contribuíram para propagar a imagem de que se elegem inúteis, que há excesso de deputados e senadores, pagos regiamente para não trabalharem e para garantir emprego aos parentes. Em resumo, em vez de os cidadãos aprenderem a resistir contra os rentistas, os cidadãos são adestrados para desmoralizar a instituição parlamentar. O projeto de reforma da Constituição prevê reduzir o número de representantes eleitos. Com isso, os eleitos ficarão ainda mais longe dos eleitores. Os distritos eleitorais serão redivididos: de um distrito eleitoral para uma média de 100 mil eleitores, passará a haver um distrito para áreas de mais de 400 mil eleitores. Uma lista extra de eleitos na eleição proporcional garantirá a cada partido alguma sobrevida, desde que o partido não rejeite a concentração do poder.

Assim, de chantagem em chantagem, a Constituição da V República é modificada para ampliar seu alcance autoritário. Regime de crise nascido para resolver a crise da descolonização e as exigências de um capitalismo de Estado, a própria crise gerou condições, pelos seus próprios meios, para uma adaptação aos novos imperativos autoritários da ordem social de nosso tempo. 

Reivindicar a Constituinte e uma VI República é, nessas condições, como que o coração de uma estratégia alternativa. Essa démarche fez convergir os objetivos sociais e ecológicos, de modo a gerar um só processo pelo qual o povo volta a assumir o comando democrático do governo. É o que chamamos de Revolução Cidadã, da França que não se rende.*****



[1] Militantes que lutam pelo estabelecimento de uma Zone à Défendre (ZAD) [zona a ser preservada], na qual os militantes querem que não haja construções. Caso exemplar é o movimento "zadista" que resiste contra a construção do aeroporto de Notre-Dame-des-Landes, na França [NTs].

Um comentário:

JQC disse...

Fantástico, preciso, atual e universal!