2/1/2019, Elijah J. Magnier Blog
O Levante está voltando ao centro da política no Oriente Médio, em posição de mais prestígio do que jamais antes desde 2011
Traduzido pelo Coletivo Vila Mandinga
Em resposta à pressão doméstica, Trump concordou com adiar o prazo para retirar milhares de soldados dos EUA, da província de al-Hasaka, nordeste da Síria, depois de ter anunciado a retirada, inicialmente anunciada para 30 dias, até abril desse ano. Jornalistas belicistas e falcões de think-tanks no establishment norte-americano pressionaram Trump com argumentos implausíveis, para que mantivesse a presença militar dos EUA na Síria. Os ataques contra Trump foram quase todos construídos a partir do pretexto de proteger aliados dos EUA, os curdos, que correriam risco de serem exterminados pelos turcos. Outros analistas chegaram a repetir o mantra norte-americano absurdo segundo o qual “ISIS tem entre 20 mil e 30 mil militantes na Síria e Iraque” para justificar a continuada ocupação do nordeste da Síria. Como se não bastassem esses argumentos, houve também quem dissesse que Trump estaria entregando o norte da Síria a espantalhos iranianos e russos; ou que estaria facilitando a “conexão Irã-Bagdá-Damasco-Beirute”. Trump permanece determinado a tirar suas tropas, por mais que seus aliados Israel, França e Reino Unido supliquem que os EUA permaneçam no Levante.
Nenhum adiamento mudará o destino da província de al-Hasaka ou o atual curso já definido dos eventos: 2019 marcará a volta da província nordeste ao controle por forças do governo sírio; Turquia está escolhendo o seu lado; e os árabes – com medo de serem deixados órfãos como os curdos – cobrem Assad de gentilezas e homenagens, como se não tivessem feito guerra contra a Síria, desde 2011.
No que tenha a ver com os curdos em al-Hasaka, baseados no nordeste da província síria, ofereceram-se como escudos humanos para proteger as forças de Trump, porque se consideravam aliados dos EUA. Hoje, depois da decisão de Trump de retirar suas forças de ocupação, afinal foram obrigados a entender claramente que os EUA não são aliado que mereçam qualquer confiança. De fato, o presidente Donald Trump não consultou seus aliados europeus e com certeza tampouco consultou o YPG/SDF dos curdos da Síria, antes de decidir retirar os soldados dos EUA. O YPG, um ramo do PKK na Síria, compreende que a presença continuada de forças norte-americanas como exército de ocupação impõe aos próprios curdos a carga extra de reconstruir as cidades e a infraestrutura destruídas. Trump não tem qualquer vontade de reconstruir coisa alguma, e não está reunindo ajuda financeira suficiente para essa finalidade, dos países árabes ricos em petróleo, que já entenderam que a guerra na Síria acabou.
Vê-se assim que já está bem claro que o atual establishment norte-americano não quer investir na província de al-Hasaka, nem, tampouco, os aliados árabes, que não veem qualquer vantagem em continuar a apoiar uma “mudança de regime” já fracassada na Síria. Os árabes estão dedicados hoje a reabrir as respectivas embaixadas em Damasco, tentando consertar as relações diplomáticas com o governo Assad, que eles próprios desgraçaram em sete anos de guerra. Sudão, os Emirados, o Bahrein já reataram relações oficiais com o governo sírio, e logo o Kuwait fará o mesmo. Também se espera que outros países o sigam. Arábia Saudita não se opõe à ideia. Na verdade, Sudão, Bahrein e os Emirados são aliados muito próximos da Arábia Saudita e jamais se teriam aproximado do presidente Bashar al-Assad sem o consentimento de Riad.
A Arábia Saudita tem enviado muitos sinais positivos a Damasco: a abertura da passagem Nasseb na fronteira Síria-Jordânia teve a bênção dos sauditas, e espera-se que a Arábia Saudita tenha papel positivo durante a próxima reunião da Liga Árabe-Europeia, marcado para 24 de fevereiro no Cairo, Egito. A Arábia Saudita jamais cortou contato com a Síria desde que o rei Salman chegou ao poder: em 2015, por iniciativa dos russos, o príncipe coroado Mohammad Bin Salman reuniu-se com o enviado de segurança do presidente sírio, general Ali Mamlouk, no aeroporto de Riad, para explicar que herdara a política anti-Assad do governante que o antecedeu, e que gostaria de ver alguma distância entre o Irã e o Levante. Mamlouk mantinha elos diretos com o brigadeiro Khaled Bin Ali Bin Abdallah al-Hneydan, chefe da inteligência dos sauditas. Explicou que a Síria é fiel aos seus amigos iranianos e não desejava limitar esse relacionamento com Teerã, embora a Síria tampouco desejasse, por isso, ser afastada de outros países árabes. Em recente visita ao Egito, Mamlouk levou uma mensagem de Assad à Liga Árabe: “A Síria não se separou da Liga Árabe, mas foram os árabes que se separaram da Síria in 2012. Os que forçaram Damasco a sair, podem trazê-la de volta”.
Além disso, a Arábia Saudita demitiu Adel al-Jubeir da posição que tinha como ministro de Relações Exteriores, Jubeir que repetidas vezes ao longo dos anos de guerra exigiu que Assad fosse removido do poder, por “meios diplomáticos ou militares”, já não tem lugar reservado nas novas relações entre Arábia Saudita e Síria.
Damasco vê-se agora em posição mais forte, em 2019, do que esteve nos últimos sete anos de guerra. A Turquia não quer pôr-se contra Assad, e está contando com Irã e Rússia para estabelecer novo relacionamento com Damasco. O presidente Erdogan precisa de Rússia e Irã como aliados comerciais estratégicos. Sabe que os EUA não merecem qualquer confiança como parceiros, dado que até já armaram até os dentes os inimigos da Turquia, os YPG/PKK na Síria, sob o pretexto de que lutariam contra o ISIS.
Erdogan também sabe que Assad pode apoiar ataques dentro das fronteiras turcas, por curdos e tribos árabes, se a Turquia não se alinhar numa parceria permanente com Rússia, Irã e Síria. A Turquia sofreria, no caso de a Síria alinhar-se com os Emirados Árabes Unidos e os sauditas, contra ela. Os aliados dos EUA no golfo, especialmente os Emirados, não escondem a animosidade contra Ancara. O ministro de Estado para Assuntos Externos dos Emirados Árabes Unidos Anwar Gargash diz que seu país quer voltar às relações de amizade com a Síria e visa a “pôr-se contra os fronts iraniano e turco na região [no Oriente Médio]”.
Assim, Erdogan está sendo forçado a definir estratégia mais amistosa para a Síria – sem necessariamente opor-se aos EUA, porque não tem planos para sair da OTAN em futuro próximo – mantendo relacionamento mais harmonioso com seus parceiros no Levante, Rússia e Irã. Esses são os melhores canais para que a Turquia coordene a presença de suas forças e ‘agentes locais’ na Síria e evite qualquer colisão com as forças do governo sírio. Esse foi o contexto da reunião russo-turca em Moscou, no final de dezembro passado, quando Erdogan aceitou não substituir forças dos EUA em Manbij, permitindo que os EUA retirem-se primeiro, de modo que o Exército Sírio possa entrar e, no momento acertado, depois, desarmar o YPG/PKK.
Mais importante que isso, Erdogan não quer ver Assad unir-se à emergente frente árabe contra a Turquia. Do mesmo modo, os países árabes que repentinamente se puseram a manifestar afeto e carinho por Assad parecem desejar manter abertas as próprias opções, trazendo Damasco para mais perto, no caso de Trump virar-se repentinamente contra eles, como já fez no caso dos curdos do PKK na Síria.
Mas a Turquia tem mais um problema para diferir: Idlib e os jihadistas. Na área rural de Aleppo e na área rural de Idlib, os jihadistas do grupo HTS (Hay’at Tahrir al-Sham, i.e. ex-Frente al-Nusra) decidiram esmagar as forças pró-Turquia de Noureddine Zengi e conseguiram chegar ao controle de todos os fronts contra o exército sírio. O grupo HTS tirou vantagem da presença de muitas forças pró-Turquia no front em Manbij, para atacar as forças que haviam sido deixadas para trás. Esses jihadistas, apoiados por militantes do Turquistão, jamais respeitaram o cessar-fogo firmado em Astana por Turquia, Rússia e Irã. As repetidas violações dispararam várias respostas duras dos russos. Se decidirem atacar em grandes números as linhas de defesa do exército sírio, o cessar-fogo deixará de valer. A Síria terá de combater, com o apoio de seus aliados e da Rússia. O timing – caso aconteça antes da retirada dos norte-americanos – não será adequado.
Aconteça o que acontecer no front de Idlib, o governo de Damasco está decidido a retomar o território ainda sob controle de jihadistas, tão logo se apresente momento adequado para o assalto.
Mas esses não são os únicos jihadistas que restam na Síria: o ISIS ainda ocupa cinco, talvez seis vilas ao longo do rio Eufrates, os soldados norte-americanos lhes garantiram proteção silenciosa e constante durante muitos meses.
Essas vilas são as únicas áreas físicas ainda sob controle do ISIS em todo o Iraque e Síria. Mesmo assim, o Pentágono insiste, ridiculamente, que haveria entre 20 mil e 30 mil militantes do ISIS nos dois países. A inteligência síria estima que o número de militantes do ISIS nos vilarejos do Eufrates não chegue a 1.500. No Iraque, ainda há células ‘adormecidas’ doISIS. A menos que o Pentágono conheça e tenha detalhes minuciosos de cada uma dessas células ‘em espera’, é impossível estimar o número de apoiadores do ISIS em várias cidades iraquianas. As unidades iraquianas de contraterrorismo e Hashd al-Shaabi estabeleceram controle firme sobre todas as províncias e já se infiltraram em muitas células ISIS, prendendo regularmente e discretamente muitos militantes. Forças da segurança do Iraque estimam em 1.500-2.000 o número de militantes do ISIS em todo o Iraque.
O número de carros-bomba e “ataques espetaculosos” nos últimos meses, na Mesopotâmia, é insignificante. Evidentemente o ISIS pode atacar objetivos isolados ou alvos moles em aldeias remotas, ou viajar à noite em pequenos grupos, para marcar presença. Mas não há dúvidas de que o ‘Estado Islâmico’ do grupo foi irrecuperavelmente lançado à lata de lixo da história. As estimativas alucinadamente exageradas que o Pentágono tem distribuído só podem ser interpretadas como parte de um esforço para tentar justificar uma presença por tempo indeterminado dos EUA na Síria e Iraque.
Não importa se Trump decidir adiar ou apressar a retirada dos soldados dos EUA, o YPG/PKK já escolheram seu campo, ao lado de Damasco. Quanto antes os soldados norte-americanos saírem de lá, melhor, se querem evitar reação de vingança dos que se ofereceram como escudo humano durantes anos e viram morrer milhares de homens e mulheres na luta pelo sonho de Rojava. Não importa por quanto tempo os EUA alimentem sua hostilidade contra o governo sírio, os árabes estão prontos a começar a investir na construção do Levante, para purgar seus pecados por terem financiado a guerra por tantos anos, e para trazer de volta ao seio dos árabes o prestigioso estado sírio.
Ninguém está mais interessado que o Exército Árabe Sírio em derrotar ISIS e garantir que não haja volta para qualquer autoproclamado ‘Estado Islâmico’. Para que isso aconteça, Assad tem de eliminar a al-Qaeda e todos os jihadistas da Síria: a Turquia muito apreciaria que lhe tirassem das costas esse peso; e Rússia e Irã consideram o extermínio dos Takfiris no Levante como medida vital para sua segurança nacional.
A Turquia dará mais passos positivos na direção de Assad, que hoje goza de maior prestígio do que jamais antes desde 2011.
De fato, o Levante está voltando ao centro do Oriente Médio e ao ponto focal da atenção do mundo, em posição mais forte desde 2011. A Síria já conta com mísseis avançados de precisão, capazes de alcançar qualquer prédio em Israel. Assad também tem sistema de defesa aérea com o qual jamais sequer sonhara antes de 2011, tudo graças às repetidas violações de seu espaço aéreo e ao modo arrogante como os israelenses desafiam o poder dos russos. O Hezbollah construiu bases para seus mísseis de precisão de longo e médio alcance nas montanhas, e criou laço profundo com a Síria, que jamais seria sequer imaginável, não fosse a guerra.
O Irã construiu sólida fraternidade estratégica com a Síria, graças ao papel que desempenhou na luta para derrotar o plano para mudar o regime do presidente Assad.
O apoio que a OTAN assegurou, e que permitiu o crescimento do ISIS, criou um laço entre Síria e Iraque que nenhum laço muçulmano ou baathista conseguiria jamais criar: o Iraque tem hoje “carta branca” para bombardear posições do ISIS na Síria sem depender de nova autorização da liderança síria (agora que Assad autorizou a liderança iraquiana a se integrar à luta contra o ISIS), e forças de segurança do Iraque podem entrar na Síria a qualquer momento que considerem adequado para dar combate ao ISIS. O eixo anti-Israel nunca foi mais forte do que é hoje. Eis o resultado da guerra de 2011-2018, que impuseram à Síria.*******
7 comentários:
Sensacional! Magnier é um dos melhores analistas geopolíticos em atividade. Compreender todos esses meandros e labirintos da política do Oriente Médio não é para qualquer um...
Excelente, didático e verdadeiro. Parabéns Elijah Magnier!
A competente análise do autor demonstra que os EUA não têm controle sobre o resultado final das maluquices que planejam seus falcões e este resultado pode ser o oposto do que sonhavam, como neste caso da invasão da Síria por mercenários patrocinados pela OTAN, com os EUA à frente. O Grande Satã perdeu prestígio no Oriente Médio, perdeu aliados, perdeu armas que acabaram caindo nas mãos do Exército Árabe Sírio, perdeu o controle sobre seus terroristas de estimação, provocou o aumento do ódio pelos estadunidenses não só no Oriente Médio como no mundo inteiro, provocou a migração de milhões de sírios que aumentou a crise da chegada em massa de migrantes na Europa (fora os que já migravam da África), ou seja, a invasão do Iraque, do Afeganistão, da Síria, e do Iêmen foram altamente prejudiciais e humilhantes para os EUA e provocaram uma união mais sólida entre as forças da Resistência tornando a posição da entidade sionista extremamente frágil.
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