6/8/2015, MIKE WHITNEY, Counterpunch
Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu
Eis o o-que-é-o-que-é da política exterior dos EUA do dia: O que é 'mudança de regime' sem mudança de regime?
'Mudança de regime' sem mudança de regime é o governo do regime que está no poder, mas não consegue governar. Esse é o atual objetivo da política dos EUA para a Síria: enfraquecer a capacidade para governar do presidente Bashar al-Assad, sem removê-lo do gabinete de governo. A ideia é simples: use os 'jihadis' pagos e treinados pelos EUA para capturar e ocupar porções relativamente grandes do território, tornando impossível para o governo central controlar o estado. Esse é o plano do governo Obama para enfrentar Assad: torná-lo irrelevante.
A estratégia apareceu explicada em detalhes num artigo de Michael E. O’Hanlon do Brookings Institute, sob o título "Deconstructing Syria: A new strategy for America’s most hopeless war" [Desconstruir a Síria: Nova estratégia para a mais sem esperanças das guerra dos EUA]. Aqui vai um excerto:
"…a única trilha realista adiante pode ser um plano para desconstruir a Síria (...) A comunidade internacional deve trabalhar para criar bolsões com com segurança e governança mais viáveis dentro da Síria (...) A ideia deve ser ajudar elementos moderados, sempre que possam, a estabelecer zonas seguras dentro da Síria. Norte-americanos, como sauditas, turcos, britânicos, jordanianos e outras forças árabes atuarão em apoio, não só aéreo mas, eventualmente, também em solo, com forças especiais. Essa abordagem se beneficiará das áreas de deserto aberto na Síria, que pode permitir a implantação de zonas-de-amortização, que podem ser monitoradas para detecção de possíveis sinais de ataque inimiga. As forças ocidentais propriamente ditas permanecerão em geral em posições mais seguras – dentro das zonas seguras, mas longe das frentes de combate – pelo menos até que a confiabilidade de tais defesas e também de forças aliadas locais permita instalar-se em viver em locações mais avançadas.
Criados esses santuários, eles gerariam zonas autônomas que nunca mais teriam de enfrentar a ameaça de serem governadas seja por Assad ou pelo ISIL….
O objetivo, nesse ínterim, pode ser uma Síria confederal, com várias zonas altamente autônomas (...) A confederação terá provavelmente de contar com o apoio de alguma força internacional para manutenção da paz (...) para que as zonas sejam defensáveis e governáveis, para ajudar a garantir alívio às populações que vivam nelas, e para equipar e treinar mais recrutas, de modo que as zonas sejam estabilizadas e gradualmente expandidas" ("Deconstructing Syria: A new strategy for America’s most hopeless war", Michael E. O’Hanlon, Brookings Institute).
Parece ser o exato plano básico de jogo, para o que se vê hoje na Síria. Ou não?
Observem que O’ Hanlon em nenhum momento considera as implicações morais de invadir nação soberana, matar dezenas de milhares de civis e arrancar da própria casa milhões de outros. Todas essas são coisas que absolutamente não passam pela cabeça desses 'especialistas' pagos para conceber essas 'estratégias' para o Império. Tudo é grão para o moinho.
Vejam que o autor refere-se a "zonas de amortização" e "zonas seguras" [orig. "buffer zones and "safe zones"], exatamente os mesmos termos que estão sendo usados repetidamente em relação ao acordo entre Turquia e EUA (para os EUA usarem a base turca de Incirlik). A Turquia quer ajudar os EUA a criar as tais zonas seguras ao longo da fronteira norte da Síria, para proteger a área e criar ali um santuário para treinar os chamados [terroristas] "moderados", que, na sequência serão usados na guerra dita contra o ISIL.
Na verdade, essas "zonas seguras" são item vitalmente importante para o plano mais amplo de O’Hanlon, que visa a partir o território sírio em um milhão de enclaves desconectados, controlados por mercenários armados, afiliados da al-Qaida, senhores-da-guerra locais. Esse é o sonho de Obama para uma "Síria liberta"... um estado sem lei, falhado e falido, semeado com dezenas de bases militares dos EUA, em torno das quais a exploração massiva de recursos naturais locais possa prosseguir sem perturbações.
O que Obama quer evitar a qualquer custo é outro embaraço como o do Iraque, onde a remoção de Saddam criou um vácuo de segurança que levou à revolta violenta e prolongada que está saindo muito cara aos EUA, em termos de sangue, dinheiro e credibilidade internacional.
Por isso Obama abraçou a 'nova' estratégia, que lhe parece trazer fórmula mais esperta para alcançar os mesmos objetivos. Em outras palavras: os objetivos não mudaram. A única diferença está nos métodos. Mais um trecho de O’Hanlon:
"O plano não seria dirigido só contra o ISIL, mas também em parte contra Assad. Mas, concessão necessária à realidade dos fatos, não visaria explicitamente a derrubá-lo, nem a negar a ele o controle do território no caso de Assad ainda desejar governá-lo. As zonas autônomas seriam libertadas com o claro entendimento de que não voltariam a ser governadas por al-Assad ou sucessor. Nesse conceito, contudo, em nenhum caso Assad seria visto como alvo militar, mas áreas que ele controla (e bombardeia cruelmente), sim. E se Assad demorar demais para aceitar um acordo para exilar-se, certamente enfrentará perigos diretos ao seu governo e inclusive à sua pessoa " (Op. cit., Michael E. O’Hanlon, Brookings Institute).
O que significa isso?
Significa que a Síria será campo de teste para a nova estratégia de O’Hanlon-Obama para mudança de regime, estratégia que antevê, como cobaia, o presidente Assad. E para que não reste qualquer dúvida ou mal-entendido sobre o real objetivo da operação, O’ Hanlon oferece o seguinte estarrecedor comentário:
"Esse plano difere da atual estratégia em três pontos. Primeiro, que a ideia deve ser claramente exposta como objetivo declarado dos EUA (...) Assim, o plano ajudará a dissipar a suspeita, sempre presente, de que Washington deu-se por satisfeita com tolerar o governo de Assad como um mal menor " (Op. cit., Michael E. O’Hanlon, Brookings Institute).
Quer dizer que o governo deve parar de fingir que os EUA estariam fazendo guerra contra o ISIS e apenas admitir, abertamente, que 'Assad tem de sair'. Segundo O’ Hanlon, essa atitude ajudará a suavizar as coisas com outros membros da coalizão, ainda confusos quanto às reais intenções de Washington. E O’ Hanlon tem mais a oferecer:
"…equipes multilaterais de apoio, alojadas em destacamentos de forças especiais e as capacidades necessárias de defesa aérea devem ser preparadas para ser instaladas em áreas do território sírio, tão logo elementos da oposição possam tomar e ocupar com confiabilidade pontos chaves (...) Essa última parte será, claro, a mais difícil, e o deslocamento real dessas equipes, a mais arriscada. Nada precisa ser feito às pressas (...) Mas é parte necessária do esforço" (Op. cit., Michael E. O’Hanlon, Brookings Institute).
Tradução: haverá coturnos norte-americanos em solo, na Síria. Contem com isso. Tudo bem usar os jihadis como bucha de canhão para iniciar a carga e "amolecer" o inimigo; adiante, será preciso mandar a Equipe A para consumar o negócio. Significa forças especiais, uma zona aérea de exclusão sobre todo o país, bases avançadas operantes e furiosa campanha de propaganda para convencer as ovelhas do rebanho de que a Síria tem de ser destruída para preservar a segurança nacional dos EUA. Tudo isso virá na Fase 2 do neofiasco que será a guerra dos EUA à Síria, neofiasco que está sendo cevado para atingir níveis inauditos de magnitude.
Para encerrar, vejam O’ Hanlon, num derradeiro surto de sua nova estratégia para mudar regime por ininterrupto espancamento:
"Esse tipo de plano pode ser a única via realista que há adiante (...) Principalmente, uma vez que não é isento de riscos para os EUA, a escala do envolvimento militar considerado não é substancialmente maior do que fizemos, ano passado, mais ou menos, no Afeganistão. O presidente Obama (...) não deve ver a Síria como problema a passar adiante para seu sucessor, mas, isso sim, como crise que agora cobra sua atenção e uma nova estratégia" (Op. cit., Michael E. O’Hanlon, Brookings Institute).
Assim sendo, aí está: o plano para rasgar a Síria em farrapos, precipitar crise humanitária ainda maior e derrubar o presidente Assad, sem ter de removê-lo fisicamente da presidência. E toda essa carnificina, toda essa destruição, resumidas num ensaio de 1.100 palavras. Isso é capacidade de síntese.
Mas... será que essas nulidades obcecadas por 'construir políticas', feito O’ Hanlon, nunca pensam no sofrimento que provocam com suas 'estratégias'? Vai-se ver, talvez até pensem. Mas não ligam. *****
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