quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Decifrando a charada do delírio iraquiano dos curdos, por Pepe Escobar

27/9/2017, Pepe Escobar, Asia Times








Masoud Barzani superestimou as cartas que tinha na mão – nenhuma potência regional aceitará a partição do Iraque 



"Durante a Guerra Fria, o mulá Mustafa Barzani (pai de Masoud Barzani) aproximou-se de Washington e do xá do Irã. Serviu como oficial do Mossad. Na imagem, é visto aqui em Israel com Abba Eban (Ministro dos Negócios Estrangeiros) e com o general Meir Amit (diretor do Mossad)" [Imagem acrescentada pelos tradutores].

O esperto líder de clã Masoud Barzani, presidente do Governo Regional do Curdistão, GRC [ing. Kurdistan Regional Government (KRG)], anunciou que o "Sim" venceu o referendo da independência, resultado que não tem força de lei, na 2ª-feira. Agora que os dedos indicadores marcados com tinta azul real não lavável já saíram da frente, começa a verdadeira batalha entre o GRC e Bagdá. O primeiro-ministro do Iraque Haider al-Abadi e a Suprema Corte do Iraque denunciaram o referendo como "não constitucional".



Os curdos constituem quase 22% de uma população iraquiana de 32 milhões. São predominantemente sunitas e falam língua indo-europeia próxima do farsi. Os curdos iraquianos gozaram de significativa autonomia desde que Papai-Bush implantou uma zona aérea de exclusão sobre o norte do Iraque, depois da Operação Tempestade do Deserto, em 1991. Tiveram considerável serventia para ajudar a Operação Choque e Pavor em 2003, e a força Peshmerga (força do Curdistão iraquiano) é aliada de facto dos EUA, combatendo contra o Estado Islâmico – com cobertura aérea dos EUA – depois do colapso do Exército do Iraque e a encenada conquista de Mosul pelo Califato, em 2014. Os seus sonhos de separarem-se do Iraque dominam o cenário há quase três décadas.


Menino anda de bicicleta ostentando bandeira do Curdistão em Tuz Khurmato, no Iraque, em 24 de setembro de 2017. Foto: Reuters / Thaier Al-Sudani

Mas esse Governo Regional Curdo está longe de ser um ramo de florezinhas da montanha. Dentro dele, o vetor crucial é a rivalidade entre Erbil e Sulaimaniya. Erbil, predominantemente tribal, é governada pelo clã Barzani. Sulaimaniya, cidade muito mais aculturada, é comandada pelo clã Talibani, e seu partido União Patriótica do Curdistão, UPC [ing. Patriotic Union of Kurdistan (PUK)] tem laços íntimos com o Irã. Masoud Barzani é visto em Sulaimaniya como nada além de rude oportunista.

O referendo foi realizado em três províncias do GRC – Erbil, Sulaimaniya e Dohuk – mas também, crucialmente importante, no barril de pólvora que é o governorado de Kirkuk, Meca do petróleo do norte do Iraque, que tem população mista de curdos, árabes (sunitas e xiitas) e turcomenos.

Barzani definiu um timing muito esperto. Desde 2014, mais de três milhões de não curdos fugiram de Kirkuk e arredores, rumo a Turquia e Síria, e Barzani aproveitou-se da luta contra o ISIS para anexar a província e promover sua própria griffe de "limpeza étnica" branda.

É o petróleo, estúpido

Os curdos também constituem 20% da população de 75 milhões da Turquia. Dado que a Peshmerga jamais se envolveu com as forças de Bagdá, Ankara nunca invadiu o GRC. Mas o referendo levou o presidente Erdogan da Turquia a subir dramaticamente as apostas. "Nossos militares não estão [na fronteira] para nada", disse ele. "Podemos aparecer de repente, uma noite dessas."


Essas batidas na porta nos levam ao inevitável santo dos santos: o petróleo. Como disse Erdogan, "vamos ver por que dutos o governo regional do norte do Iraque enviará seu petróleo, ou onde conseguirá vendê-lo. A tampa está conosco. Quando fecharmos a tampa, acabou-se."

Erdogan certamente fez suas contas de por quanto tempo algum Governo Regional Curdo conseguiria sobreviver sob ameaça de Ankara, com o petróleo vendido a menos de $60 o barril, e sob o peso de seus próprios gastos militares, da própria corrupção e da própria independência.

Nawzad Adham, diretor-geral do Ministério de Comércio e Indústria do GRC, avalia os negócios com Turquia e Irã em mais de US$10 bilhões ao ano. O GRC tem de importar de Turquia e Irã nada menos de 95% dos produtos agrícolas que consome. E, mais uma vez, o GRC depende totalmente de Ankara para exportar 550 mil barris de petróleo por dia.

O presidente curdo-iraquiano Masoud Barzani, aqui fotografado em conferência de imprensa em Erbil, Iraque, dia 24/9/2017, revelou-se um oportunista. Reuters / Azad Lashkari


Para Bagdá essas exportações são completamente ilegais. O GRC controla mais de 40% do petróleo do Iraque, e sua reservas são estimadas em cerca de 45 bilhões de barris e 150 trilhões de metros cúbicos de gás. Para fúria de Bagdá, o GRC pode estar embolsando 25% do total da renda gerada pelo petróleo do Iraque.

Claro que florezinhas da montanha plantadas em petróleo sempre desabrocham. Depois de um acordo em outubro de 2011 com a Exxon Mobil (quando o atual secretário de Estado dos EUA Rex Tillerson ainda era presidente da empresa), acordo que não obteve a aprovação de Bagdá, a Total está investindo no campo de petróleo Shaikan. Rosneft assinou contrato multibilionário, em dólares, para construir um novo gasoduto – e bem provavelmente não teria havido acordo que os russos não tivessem recebido de Ancara garantias de segurança. E a britânica Gulf Keystone também está entrando na coisa.

Ainda assim, a verdadeira fazedora de reis é a turca BOTAŞ Petroleum Pipeline Corporation. E Erdogan está certo: basta apertar um botão para vedar completamente o fluxo de petróleo para o porto de Ceyhan no Mediterrâneo. A demanda chave que Erdogan faz ao Governo Regional Curdo pós-referendo não é negociável: sem declaração de independência.

E quanto aos sírios curdos?

Barzani andou espalhando aos quatro ventos que a "parceria" do GRC com Bagdá está acabada. Ao fazê-lo, conseguiu encobrir o fato de que o GRC tomou a província de Kirkuk só porque o Exército do Iraque dobrou quando teve de encarar o ISIS em junho de 2014. E chegou realmente a elogiar a ocupação de Mosul pelo ISIS, porque a viu como perfeita abertura para a partição do Iraque.

Mas foram iraquianos – e, detalhe crucialmente importante, foram milícias xiitas: as Unidades de Mobilização Popular [ing. Popular Mobilization Units, PMUs] – que realmente recuperaram as áreas invadidas pelo ISIS. Os curdos só cuidaram de defender território do Governo Regional Curdo. E Teerã acerta quando chama a atenção para o fato de que foram os soldados do Corpo da Guarda Revolucionária Iraniana [ing. Iranian Revolutionary Guards Corps (IRGC)] que salvaram os curdos das garras do ISIS: asPMUs, afinal de contas, foram armadas e treinadas por instrutores e conselheiros iranianos da Força Quds, de elite.

Mesmo que os campos de petróleo de Kirkuk estejam atualmente sob controle da Peshmerga, Barzani nunca seria doido a ponte de entrar em guerra contra Bagdá por Kirkuk, especialmente se as PMUs estão envolvidas. Para todos os objetivos práticos, significaria guerra também contra o Irã.

Se não parecer perigoso que chegue, misture com o que querem os curdos sírios. Abdul Kader Hevidili, vice-comandante das Forças Sírias Democráticas apoiadas pelos EUA, jura que os sírios curdos apoiam plenamente o movimento de Barzani a favor da independência total.

Fortalecidos, porque atualmente controlam 25% do território da Síria e, pode-se dizer, 40% do petróleo e do gás, se conseguirem manter-se na província de Deir-Ezzor (ainda não há negócio fechado) rica em recursos de energia, os curdos sírios visam, antes de tudo, a uma federação, antes de se atreverem a sonhar com formar estado próprio. O contragolpe inevitável – letal – será uma aliança Damasco-Ankara, porque um eixo operante a favor da independência, formado de curdos sírios e GRC, é matéria-prima dos piores pesadelos de Erdogan.

Assim sendo, Teerã é aliada de Bagdá e também de Ankara no interesse para impedir qualquer divisão do Iraque – para desgosto do eixo ocidental.

As cartas com que Barzani tem de jogar atualmente estão longe de ser 5 estrelas. A única chance real e prática de sobrevivência econômica para seu Governo Regional Curdo está em acertar algum negócio com Erdogan para garantir que as exportações de petróleo prosseguirão sem perturbações. Mas o que Erdogan exigirá em troca é totalmente impensável – o GRC obrigar o PKK na Turquia e as YPGs na Síria a baixarem a crista. Para o PKK, Barzani não passa de bandido assaltante de rua.

Assim sendo, não é bye-bye Sykes-Picot. Longe disso – ainda que o Iraque continue a ser fracionado. Bagdá está realmente se fortalecendo – como parte do grupo "4+1" (Rússia, Síria, Irã, Iraque plus Hezbollah), que para todas as finalidades práticas já venceu a guerra na Síria. Nenhum desses atores – ou a Turquia, que está envolvida nas negociações de Astana – quer Síria ou Iraque fracionados.

Sobretudo, a Rússia está de volta como parceira do Iraque no front militar, e já vendeu"grande pacote" de tanques T-90 por US$1 bilhão – negócio que implica Exército Iraquiano muito mais forte, antidivisão do país.

Aquele bom velho projetinho de balcanizar o "Siriaque" servindo-se do ISIS, fugiu voando pela janela, só para reaparecer à porta, fantasiado de separatismo curdo. Sorte madrasta! Não só toda a rua árabe não curda está contra o projetinho, mas também as grandes potências – Bagdá, Damasco, Teerã, Ankara e Moscou. Espera-se turbulência à frente.*****

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