segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Em defesa do socialismo



Foner and Sanders v. Eugene Debs





Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu


Diluição à dinamarquesa
Jamais subestime a corrupção moral e intelectual dos acadêmicos e intelectuais em geral, incluindo até alguns dos mais conhecidos nomes 'da esquerda'. Vejam o que escreveu o prolífico, progressista e prestigiado historiador norte-americano e professor da Universidade Columbia Dewitt Clinton, professor Eric Foner, em carta de aconselhamentoao candidato do Partido Democrata e só nominalmente socialista Bernie Sanders. 

Na carta, Foner dedica-se a ensinar o que Sanders deve responder, na próxima vez que a mídia perguntar-lhe sobre o que ele quer dizer com a expressão "socialismo democrático".[1]

Aqui, adiante, reproduzo a parte mais relevante do que Sanders disse sobre o tema até hoje – precisamente o trecho que motivou a carta de Foner. Foi o que Sanders disse no início do primeiro 'debate' entre candidatos democratas à presidência' coreografado pela rede CNN em Las Vegas, Nevada, há três semanas:


Anderson Cooper, da CNN: "Senador Sanders. Pesquisa Gallup diz que metade do país jamais poria um socialista na Casa Branca. O senhor se diz socialista democrático. De que modo qualquer categoria de socialista pode vencer eleições para a presidência dos EUA?"

Bernie Sanders: "Bem, nos vamos vencer porque explicaremos o que é socialismo democrático. E socialismo democrático tem a ver com denunciar que é imoral e errado que o 1% do topo da pirâmide nesse país possua praticamente a mesma riqueza que os 90% mais pobres. É errado, hoje, numa economia viciada, que 57% de toda a nova renda gerada vá para o 1% mais rico. Que, quando se olha à volta, pelo mundo, se veja que todas as grandes economias do mundo garantem atendimento à saúde dos cidadãos como direito, exceto os EUA. Veem-se todas as grandes economias do mundo assegurando às mães o direito de permanecer com o filho recém nascido. – Nós teremos assistência médica e licença remunerada, como todos os países da Terra. São alguns dos princípios em que acredito, e entendo que devemos olhar na direção de países como Dinamarca, Suécia e Noruega, e aprender com o que já fizeram pelos próprios trabalhadores."

Deixemos de lado por um instante o pressuposto de que Sanders estaria tentando chegar à Casa Branca (ele nãoestá) e o absurdo de pensar (ou dizer que pensa) que seria possível fazer avançar o socialismo atuando só pelas beiradas desse definitivamente fracassado Partido Democrata dos EUA, que é partido imperial, de empresários, e escravo da Finança. 

Por mais elegantes que sejam as suas denúncias contra a hiperdesigualdade nos EUA contemporâneos, o mais notável da declaração de Sanders foi o quanto ela serve ativamente ao poder, porque esvazia e enfraquece o significado das expressões "socialismo" e "socialismo democrático". 

Seja qual for o parâmetro histórico, "socialismo democrático" tem a ver com propriedade coletiva e autogestão; com os trabalhadores no controle de democracia realmente participativa. Tem a ver com controle popular das principais instituições econômicas e políticas da nação, uma "reconstrução radical da própria sociedade" (que o Dr. Martin Luther King Jr., já perto do fim da vida, declarou que era "a verdadeira questão a ser encarada"). Nessa nova griffe de pão d'água diluído do "Tio" Bernie, socialismo democrático significa um decente estado de bem-estar de modelo escandinavo.

Por que Bernie não pode invocar Debs 

Mas esse não é o único problema de Sanders se autoproclamar defensor do socialismo democrático. Outra dificuldade também grave advém de seu bem documentado, inabalável compromisso com o sistema e com o projeto imperial-militar bipartidário de Washington. Como Chris Hedges explicou em setembro passado:

"Ninguém pode ser socialista e imperialista. Ninguém pode, como fez Bernie Sanders, apoiar as guerras do governo Obama no Afeganistão, Iraque, Líbia, Paquistão, Somália e Iêmen, e ser socialista. Ninguém pode, como fez Sanders, votar a favor de leis em prol da apropriação do orçamento pelos militares, inclusive todas as leis e resoluções que legalizam e autorizam Israel a prosseguir em seu genocídio em câmera lenta do povo palestino, e ser socialista. E ninguém pode elogiar o complexo industrial militar, porque "gera empregos" para o próprio estado. Sanders pode até se servir da retórica de abaixo-a-desigualdade, mas é pleno e total membro do Caucus Democrata, que se ajoelha diante da indústria da guerra e de seus lobbyistas."

Recente ensaio de Connor Lynch em CounterPunch levava o título de "Por que Bernie Sanders Não Deve Invocar Eugene Debs." Como a historiadora Heather Cottin escreveu, quando alguém postou aquele ensaio em minha página em Facebook,

"Ele [Sanders] não pode. Debs opôs-se ao imperialismo e à 1ª Guerra Mundial. Foi preso por isso! (...) Bernie não é trabalhador, tem uma vida de serviços ao 'socialismo' da 'tendência' imperialista de 'vote-a-favor-das-guerras-imperialistas-dos-EUA-pelo mundo'. Bernie aprova o imperialismo e a 3ª Guerra Mundial". (O comentário sobre a 3ª GM talvez soe exagerado, mas não é: Sanders ofereceu pleno apoio às provocações temerárias e enlouquecidas do governo Obama contra a Rússia, na Europa Oriental e na Síria.)

A questão de alistar-se a favor do império não é só questão moral e ideológica que trabalha contra Sanders. É posição que também contradiz gravemente e torna muda e impotente grande parte da agenda social doméstica suposta progressista de Sanders.

"Os custos do império" – Noam Chomsky escreveu em 1969, "são distribuídos por toda a sociedade, como um todo, mas os lucros revertem só para uns poucos (...). O império serve como instrumento para a consolidação interna do poder e do privilégio." 

Como Chomsky e outros mostraram já incontáveis vezes, o keynesianismo militar norte-americano triunfou depois da 2ª Guerra Mundial em dois campos: (i) para impor a riqueza e o poder capitalista dos EUA no exterior; e (ii) para derrotar e bloquear em casa o keynesianismo social-democrata de bem-estar. A forma dos gastos governamentais no primeiro caso reforçaria o poder do business, mas não no segundo caso, como a elite do poder logo compreendeu. Em sentido puramente prático e mais imediato, porém, o programa social democrático de Sanders à moda escandinava para os EUA, não poderá jamais ser pago, sem redução gigante do massivo programa nacional comandado pelo Pentágono, para o qual flui mais da metade do gasto federal discricionário.

'Radicais' tipo "os nossos felásdaputa" 

Na carta que escreveu a Sanders, Foner (que é falso-democrata mas não é bobo e com certeza entende o que se passa) nem tenta corrigir o senador sobre o real significado de expressões como socialismo e socialismo democrático. Deixa passar sem criticar o "social-chauvinismo"[2] do candidato [orig. "social chauvinism"] (essa útil expressão criada por Lênin para designar socialistas apanhados na rede do militarismo e do imperialismo nacionalistas) e a longa e firme colaboração falso-independente (agora já exposta) entre Sanders e o Big Businessdos Democratas. (Nada de surpreendente nisso: a carta do professor falso-democrata foi publicada, afinal, em The Nation, principal órgão da mídia-empresa falso-independente, a serviço do Partido Democrata). 

O único problema que Foner tem com o uso hipócrita e diluído que Sanders dá ao "socialismo" e ao "socialismo democrático" é que têm inspiração exageradamente internacionalista – vale dizer, são exageradamente nórdicos:

"Você deve reconsiderar o modo como responde às inevitáveis perguntas sobre o que você entende por socialismo democrático e revolução pacífica. Da próxima vez, abrace nossa própria tradição radical norte-americana! Nada há de errado com a Dinamarca; podemos aprender muito com eles (e vice-versa). Mas a maioria dos norte-americanos ou não sabem ou nem se interessam em saber muito sobre a Escandinávia. Mais importante que isso, a resposta que você ofereceu [no debate de Las Vegas] reforça inadvertidamente a ideia de que o socialismo seria ideia que os EUA teríamos importado do estrangeiro. Em vez disso, fale de nossos próprios ancestrais radicais, cá mesmo nos EUA, porque os radicais mais bem-sucedidos sempre falaram o idioma da sociedade norte-americana e recorreram a alguns de seus valores mais profundos."

Há algo a esclarecer sobre trabalhar com e mediante a linhagem radical norte-americana. Mas o uso que Foner dá àquela tradição é muito estranho. Menciona alguns nomes muito bons do panteão radical norte-americano: Tom Paine, Frederick Douglass, Abby Kelley, os primeiros Populistas dos anos 1890s e o próprio Eugene Debs que seria a suposta inspiração de Sanders. Muitos são deixados de fora, é claro, especialmente os de tonalidade mais radical, como os Mártires do Haymarket (incluindo os anarquistas-socialistas Albert Parsons e Adolph Fischer), Lucy Parsons, Emma Goldman, líderes sindicalistas radicais (Trabalhadores Industriais do Mundo, 1ª GM) Bill Haywood, MotherJones e Tom Mooney, Joe Hill (o trovador da 1ª GM), Mario Savio, líder do Movimento Livre Manifestação do Pensamento, os heróis comunistas e trotskistas que criaram condições para o surgimento do sindicalismo durante os anos 1930s e 1940s, Malcolm X, Leonard Peltier e o Movimento dos Nativos Norte-americanos, Fred Hampton e osPanteras Negras, e o acima citado linguista com identificação com anarquistas e anti-imperialistas Noam Chomsky e tantos e tantos e tantos, que a lista não tem fim.

Mas o que mais incomoda são os nomes que Foner relembra do museu da fama dos radicais norte-americanos, não os que ele apaga:

"Por que não relembrar a plataforma Progressista de 1912, de partido que indicou Theodore Roosevelt à presidência, e exigia, dentre outras coisas, limites estritos às doações para campanhas eleitorais, cobertura universal de saúde aos cidadãos, fiscalização ativa e vigorosa por autoridades públicas, sobre as empresas e conglomerados gigantes de empresas – que ainda não se consegue fazer hoje, um século adiante?"

Como Foner com certeza sabe, Teddy Roosevelt – furiosamente nacionalista, social-darwinista e imperialista-militarista – sempre foi "liberal-pró-empresários" feroz, inimigo figadal de políticos radical-democratas em geral, e do Partido Socialista de Debs em particular. 

O projeto que Teddy Roosevelt partilhava com todos os demais candidatos à eleição presidencial de 1919, exceto Debs, vinha para completar o que o brilhante historiador Martin J. Sklar chamou de "reconstrução empresarial-corporativa do capitalismo norte-americano": uma transição do capitalismo proprietário e pequeno-produtor, para o capitalismo empresarial-corporativo concentrado, que mantinha intacto seu sistema de lucros sem nenhuma "interferência indevida" de maiorias populares e de movimentos populistas e socialistas de base.[3]

"A chamada Convenção Progressista" (1912)

Debs com certeza levaria um susto, ao ver seu nome mencionado no mesmo fôlego, junto de Teddy Roosevelt e do Partido Progressista de 1912 de Bull Moose, como se tudo isso constituísse alguma "tradição radical norte-americana". Aqui vai uma seleção de excertos do discurso de campanha que Debs fez em Fergus Falls, Minnesota, dia 12/8/1912:

"Amigos e companheiros trabalhadores: (...) os poucos e espertalhões triunfaram, e agora têm as massas à mercê deles. Esses poucos são aliados íntimos, no comando econômico, como também no comando da máquina política. O dinheiro deles e os mercenários deles controlaram a convenção Republicana em Chicago, escreveram a plataforma deles e ditaram os candidatos, e o mesmo é verdade também para a convenção Democrata em Baltimore. Quanto à chamada Convenção Progressista, basta dizer que nem tentaram esconder o fato de que foi financiada e controlada por três conspícuos representantes da plutocracia, dos donos de quase toda a terra e que mandam nela (...) Essas três convenções, a Republicana, a Democrata e a Progressista foram compostas de e controladas inteiramente por políticos profissionais a serviço da classe dominante (...) 

O Partido Socialista é o único partido nessa campanha que se levanta contra o sistema atual e a favor do povo no governo, o único partido que firmemente se declara partido dos trabalhadores e da classe trabalhadora, e seu objetivo é derrubar a escravidão pelo salário."

"Enquanto prevalecer o atual sistema do capital, e for permitido que uns poucos sejam proprietários de todas as indústrias do país, as massas continuarão a debater-se no inferno da miséria, como hoje (...). 

A propriedade privada e a concorrência capitalista já tiveram sua hora e sua vez. É o capitalismo e o despotismo industrial. O Partido Socialista defende a propriedade social e a cooperação. É o socialismo e a democracia industrial.

Os partidos Republicano, Democrata e Progressista defendem, todos, a propriedade privada e a competição capitalista. Só o Partido Socialista defende a propriedade social e a cooperação."

"Os partidos Republicano, Democrata e Progressista creem na regulação dos trustes; o partido Socialista crê na propriedade socializada dos trustes, de modo que todo o povo possa extrair benefícios deles, em vez de só uns poucos que se vão convertendo em plutocratas, com as massas cada dia mais pobres (...) 

Os trabalhadores que construíram esse mundo e que fazem funcionar o mundo preparam-se para tomar posse do mundo. Esse é o significado do socialismo e é isso que o partido Socialista defende nessa campanha. Exigimos a maquinaria de produção em nome dos trabalhadores e sob controle da sociedade em nome do povo. Exigimos a abolição do capitalismo e da escravidão pelo salário, e a rendição da classe capitalista (...). Exigimos completo controle das indústrias pelos trabalhadores. Exigimos toda a riqueza que os trabalhadores produzem, para usufruto dos trabalhadores. E exigimos a Terra para todo o povo" (itálicos meus).

(Para saber mais sobre o desprezo socialista internacionalista forte que Teddy Roosevelt inspirava a Eugene Debs, leiam a nota[4].)

"Pôr freio aos excessos do capitalismo" 

Debs, alegado herói de Sanders, olharia com ainda mais desprezo a definição liquefeita que Bernie (e Foner) arranjaram para o tal 'socialismo democrático' deles e para o longo currículo de Sanders em apoio ao militarismo, do que o alegado herói de Obama, o Dr. Martin Luther King, Jr. olharia para o seu atual governo Democrata, incansavelmente dedicado a prestar serviços falso-progressistas a todo e qualquer poder não eleito e às ditaduras interconectadas do capital, do império, da supremacia branca, do ecocídio. Debs sofreria muito, se ouvisse o que o prof. Foner Democrata ensina ao candidato Bernie Sanders autoproclamado socialista, ambos falsos progressistas:

"Quanto ao socialismo, o termo hoje se refere, não a algum rascunho de sociedade futura, mas à necessidade de "pôr freio aos excessos do capitalismo", evidente à volta de nós; de dar poder ao povo comum, num sistema político que já beira a plutocracia, e de desenvolver políticas que deem oportunidade real para os milhões de norte-americanos que não a têm. Isso é o que "socialismo" significava nos dias de Eugene V. Debs, o grande líder trabalhista e candidato socialista à presidência (...). Debs falou o idioma do que ele chamava de "igualdade política e liberdade econômica". 

Mas igualmente importante, como Debs enfatizou, o socialismo é muito mais uma ideia moral, que uma ideia econômica – a convicção de que as vastas desigualdades de riqueza, poder e oportunidade são simplesmente erradas e de que o povo comum, usando o poder político, pode operar mudanças de longo alcance. Foi o fervor moral de Debs, tanto quanto seu especifico programa, que o tornaram amado por milhões de norte-americanos."

Debs com certeza se sentiria gravemente mal citado nessa passagem: socialismo como "rascunho de sociedade futura" ou mero esforço para "pôr freio nos excessos do capitalismo".

Socialismo, para Debs, era luta e movimento aqui-e-agora (incluídos todos os esforços dos movimentos de base, não só a política eleitoral) para derrubar e transcender, não para apenas 'adocicar', o capitalismo. 

Nenhuma "paixão moral", como Debs sabia muito bem, jamais levará muito longe o povo, se não houver um programa e um movimento especificamente socialistas que empurre os trabalhadores dos EUA e do mundo para além da depredação pelo capital e pelo império.

Pela miseravelmente diluída definição de socialismo democrático, de Foner e Sanders, uma sociopata, neoliberal militante, terrorista arqui-imperialista e agente empresarial-corporativa como Hillary Clinton está perfeita (e absurdamente) qualificada como 'socialista democrática'. Afinal, a candidata Clinton 'ataca' as desigualdades extremas e a plutocracia nos EUA-empresas. Discursa em termos apaixonadamente moralizantes a favor de mais igualdade e democracia nos EUA. "As cartas estão marcadas" [orig. The deck is stacked] a favor dos Poucos mais ricos, diz ela, enquanto cacareja, sempre a prometer subir o cacife a favor do povo trabalhador. 

Leiam o que Hillary disse depois da discussão entre Cooper e Sanders sobre socialismo democrático, em Las Vegas:

Hillary Clinton: "Bem, Anderson, permita-me concordar com você nisso, porque quando penso em capitalismo, penso nas lojinhas que foram criadas porque temos oportunidade e liberdade em nosso país para que as pessoas empreendam e deem uma boa vida a si próprias e às famílias. Não acho que devamos confundir [socialismo com] o que vemos tão seguidamente nos EUA, que é salvar o capitalismo dele mesmo. E acho que o que o senador Sanders diz com certeza faz sentido nos termos da desigualdade que temos. Mas não somos a Dinamarca. Amo a Dinamarca. Mas nós somos os Estados Unidos da América. E nosso trabalho é pôr freios nos excessos do capitalismo para que não degringole e não cause o tipo de desigualdades que estamos vendo em nosso sistema econômico."

Onde está a carta do professor de Dewitt Clinton, com manifestações de admiração e conselhos para Hillary Clinton? (Ah, a carta virá, com certeza, depois que Sanders for devidamente varrido do palco da disputa presidencial). Observe, caro/a leitor/leitora, exatamente as mesmas expressões que marquei com itálicos nas duas passagens citadas, a primeira de Foner, a segunda de Hillary: "pôr freios nos excessos do capitalismo." É possível dizerem palavras tão exatamente idênticas, por pura coincidência? Sinceramente, duvido.

FD Roosevelt e o New Deal radical?

Falando de políticos que "salvam o capitalismo dele mesmo", Foner disse que Bernie Sanders mencione outro item da "tradição radical dos EUA": "o New Deal de FDR". Claro que o caro professor de diluição do socialismo nada diz sobre como e o quanto o espertíssimo político da classe dominante Franklin Delano Roosevelt (FDR) vangloriava-se de que seu New Deal resgatou e preservou o capitalismo. Em março de 1931, o grande filósofo norte-americano John Dewey observou que "chama-se 'política' a sombra que o big business lança sobre toda a sociedade." Dewey profetizou que a política dos EUA assim continuaria enquanto o poder continuasse concentrado no "business para maior lucro privado, mediante o controle privado sobre bancos, terra, indústria, reforçado pela ação empenhada da empresa-imprensa, agentes da mídia e todos os demais meios para publicidade e propaganda." O New Deal de FDR não tocou nisso, deixou intacto o problema, feito de que Franklin Roosevelt muito se orgulhava.

Como Lance Selfa observa em seu excelente estudo The Democrats: a Critical History (Haymarket, 2008), "Roosevelt [disse aos elementos do mundo dos negócios que o criticavam, que 'Sou o melhor amigo que o sistema de lucros jamais teve'. Em discursos de campanha em 1936, Roosevelt se autoproclamou 'o salvador' do sistema de lucro privado e da livre empresa'." A jactância pode ter impressionado Dewitt Clinton (que por pouco não foi presidente dos EUA pelo proto-capitalista-de-Estado Partido Federalista, em 1812). Mas não enganou Eugene Debs. 

Foner nada diz sobre o modo como as reformas do New Deal, mesmo que acomodatícias face aos interesses da classe dominante, foram impostas à elite capitalista pela rebelião da classe trabalhadora organizada largamente por marxistas brilhantes e heroicos, mas oficialmente anônimos e outros ativistas radicais – gente que merece menção em qualquer homenagem séria à tradição norte-americana radical.

Foner muito tem a aprender se voltasse ao primeiro livro publicado por seu mentor nos anos de universidade, Richard Hofstader. Em estudo brilhante (para seu tempo), de meados do século 20, The American Political Tradition and the Men Who Made It (1949) – curiosa antecipação da história revisionista da New Left à qual Hoftsader, adiante, se oporia aristocraticamente, – Hofstader "examinou," nas palavras de Howard Zinn, "nossos importantes líderes nacionais, de Jefferson e Jackson até Herbert Hoover e os dois Roosevelts – Republicanos e Democratas, liberais e conservadores. Hofstadter concluiu que [aqui, Zinn citou Hofstader]:

"'o campo de visão abarcado pelos primeiros candidatos nos dois grandes partidos sempre foi limitado pelos horizontes da propriedade e da empresa (...) Todos aceitaram as virtudes econômicas da cultura capitalista como qualidades humanas necessárias (...) Aquela cultura foi intensamente nacionalista (...)'."[5]

Hofstader dedicou um capítulo especial a cada Roosevelt, mostrando nos dois casos o quanto o conservadorismo subjacente, sempre favorável ao Big Business, contrariava a imagem e a retórica ditas progressistas. Hofstader, com certeza, jamais viu coisa alguma de radical em FDR ou no New Deal.

O Orçamento da Liberdade 

Na "tradição radical norte-americana" que quer que Sanders invoque, Foner inclui o Orçamento da Liberdade [orig.Freedom Budget[6]]. É compreensível referência a um programa progressista interessante e completamente esquecido. Construído e promovido pelo velho líder socialista, trabalhista e dos direitos humanos, A. Phillip Randolph em 1967, o Orçamento da Liberdade foi plano ambicioso para pôr fim à pobreza nos EUA. Mas absolutamente não se pode dizer que fosse documento radical, porque explicitamente se recusava a exigir cortes no orçamento do Pentágono; não se contrapunha à distribuição desigual da riqueza e renda; e tampouco desafiava as prerrogativas da gestão pelo capital. 

As falhas daquele documento no que tivesse a ver com guerra e império (e, isso, num momento em que a guerra criminosa dos EUA contra o Vietnã enterrava a sete palmos no chão a rapidamente declarada mas jamais feita "War à Pobreza"), são especialmente notáveis, principalmente à luz do apoio que o candidato Bernie Sanders sempre deu e continua a dar ao projeto imperial dos EUA. 

Também se deve observar que os autores do "Orçamento da Liberdade", como o candidato Sanders, também eram apaixonadamente comprometidos com crescimento econômico rápido e gigante, como única solução pensável [e automática] para o problema da riqueza. De ações de redistribuição de riqueza e renda... nem uma palavra. 

Hoje, todos os indicadores mostram que o modelo do crescimento econômico do "business capitalista para lucro privado" promovido pelos dois partidos políticos governantes nos EUA é sempre sentença de morte antinatureza e antiecológica para a espécie humana e outros seres vivos. (...) A crise do meio ambiente que se desdobra ante nossos olhos é a principal razão pela qual não há tempo para conversas fiadas 'professorais' sobre se partidos assumida e desejadamente conservadores seriam 'radicais'... Conversa fiada que recomeça, pontualmente, nos EUA, a cada quatro anos, promovida pelo Partido Democrata que nunca foi, mas sempre mente que quereria ser, radical. 

O capitalismo e o outro mal gêmeo, o imperialismo, já nos empurrou até a beira, literalmente, de muitas catástrofes, todas interconectadas, dentre as quais a destruição do meio ambiente. 

O real objetivo de Debs – "abolir o capitalismo" e impor o controle popular sobre todas as principais instituições da sociedade, que é muito diferente de algum estado de algum bem-estar autodeclarado – é hoje pré-requisito urgentemente necessário à sobrevivência. 

Quem suponha que estará trabalhando na direção desse objetivo, simplesmente porque entra na dança extravaganzade qualquer sempre repetido baile quadrienal empresarial eleitoral, movido pelo big money da big media em prol só de grandes máquinas partidárias e de seus candidatos – movido pela definição cenográfica e de curta validade temporal dessa política partidária... – está perdendo o tempo e energia, próprios e dos companheiros trabalhadores e cidadãos. 

Estamos ficando sem tempo a perder com discussões acadêmicas, de professores-candidatos falso-democratas, que mais deformam que esclarecem a opinião pública, perfeito papo bullshit, para ser perfeitamente sincero. Todos temos de cuidar de outro tipo de organização dos cidadãos, completamente diferente, mais genuinamente próxima das bases e dos movimentos de base. *****





* O livro mais recente de Paul Street é They Rule: The 1% v. Democracy (Paradigm, 2014).


[1] No Brasil, há uma 'tendência' no Partido dos Trabalhadores, que se autodenomina "Socialismo Democrático". Na pág. da 'tendência', lê-se: "Fundada em 1979, a tendência Socialismo Democrático participou ativamente do processo de construção do PT e procura, desde então, dialogar com seus militantes na busca pela construção de um partido socialista, democrático, internacionalista, feminista e antirracista, ecossocialista, defensor da ética pública e do republicanismo" (quer dizer: tuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuudo isso...  desde que ninguém critique a propriedade privada) [NTs].


[2] Sobre o social-chauvinismo: "A causa de classe profunda do social-chauvinismo e do oportunismo é a mesma: a aliança de uma pequena camada de operários privilegiados com a "sua" burguesia nacional, contra as massas da classe operária, a aliança dos lacaios da burguesia com esta última contra a classe por ela explorada. O conteúdo político do oportunismo e do social-chauvinismo é o mesmo: a colaboração das classes, a renúncia à ditadura do proletariado, a renúncia às ações revolucionárias, o reconhecimento sem reservas da legalidade burguesa, a falta de confiança no proletariado, a confiança na burguesia." [NTs]


[3] Vide SKLAR, Martin J., The Corporate Reconstruction of American Capitalism, 1890-1916 (New York: Cambridge University, 1986), pp. 333-364, para discussão detalhada sobre o lugar que Theodore Roosevelt ocupou na nova formação antissocialista e liberal-empresarial corporativa da classe governante dos EUA no início do século 20. A triste deriva do pensamento de Sklar para a direita no final da vida não deve obscurecer o brilho de seu trabalho marxiano (que data do final dos anos 1950s e chega à era Reagan) sobre a reconstrução empresarial-corporativa dos EUA e a ideologia liberal empresarial-corporativa – lei, política e pensamento político durante a "Era  Progressista". Com toda a justiça, deve-se reconhecer que (por suas ideias socialistas idiossincráticas de socialismo-conservador e "sistemas mistos", segundo as quais o capitalismo continha o socialismo e vice-versa), o Sklar que escreveu The Corporate Reconstruction bem poderia alinhar-se ao lado de Sanders e Foner no que se discute nesse ensaio.


[4] Num famoso discurso que fez em Canton, Ohio em 1918, Debs falou em tom de apaixonado escárnio contra o transparentemente hipócrita rufar de tambores de Teddy Roosevelt pró-guerra contra a Alemanha em nome da "democracia".


Debs observou que Roosevelt e o Kaiser alemão não passavam de companheiros de uma mesma classe, autoritários e promotores de guerras, ambos inimigos da classe trabalhadora e do socialismo:



"Vocês lembram que, ao final do seu segundo mandato [FDR foi presidente, de 1901 a 1909 (NTs)], Theodore Roosevelt, foi à África para fazer guerra contra alguns de seus ancestrais. Vocês lembram que, ao final daquela expedição, visitou as capitais europeias; e que foi festejado, almoçado, jantado e glorificado por todos os Kaisers e Czars e Imperadores do Velho Mundo. Visitou Potsdam quando o Kaiser lá estava; e, segundo relatos publicados em jornais dos EUA, ele e o Kaiser logo se tornaram camaradas, conversando em termos de perfeita intimidade. Ficaram ridiculamente, comicamente íntimos, de trocarem tapinhas nas costas. Depois de passar em revista as tropas do Kaiser, Roosevelt, segundo os mesmos relatos jornalísticos, mostrou-se entusiasmadíssimo com as legiões do Kaiser e disse: "Se eu tivesse um exército desses, conquistaria o mundo". Conhecia oKaiser naquele dia, como o conhece hoje. Sabia que era o Kaiser, a Besta de Berlin. Pois mesmo assim se permitiu divertir-se lado a lado com a mesma Besta de Berlim; tinha os pés sob a mesa da própria Besta de Berlim; fazia pose lado a lado com a Besta de Berlim. E enquanto Roosevelt era regiamente recepcionado pelo Kaiser alemão, aquele mesmo Kaiser metia na cadeia os líderes do Partido Socialista, por lutarem contra o Kaiser e os Junkers da Alemanha. Roosevelt era convidado de honra no palácio do Kaiser, enquanto os socialistas eram presos pelo Kaiser por lutar contra o Kaiser. Quem, então, lutava pela democracia? Roosevelt? Roosevelt, que estava sendo festejado pelo Kaiser, ou os socialistas que estavam na cadeia, por ordem do Kaiser?‘Pássaros de penas iguais voam juntos'... 


Quando os jornais noticiaram que o Kaiser Wilhelm e o ex-presidente Theodore Roosevelt reconheceram-se à primeira vista, tornaram-se íntimos logo ao primeiro aperto de mão, foi como admitirem a evidência que destruiria os discursos de Roosevelt – que seria amigo do homem comum e campeão da democracia; admitiram que eram unha e carne; que eram em tudo assemelhados; que as ideias dos dois eram praticamente idênticas. Se Theodore Roosevelt é o grande campeão da democracia – o arqui-inimigo da autocracia, o que andaria ele fazendo por lá, como convidado de honra do Kaiser prussiano? E quando encontrou o Kaiser, e lhe fez reverência e o homenageou, não há aí prova suficiente de que ele também era um Kaiser na alma? Agora, depois de ter sido hóspede do Imperador Wilhelm, a Besta de Berlin, ele volta então aos EUA e quer que você e eu mandemos dez milhões de soldados para lá, para matar o Kaiser; assassinar o fraternal amigo dele, de ontem?! Pois mesmo assim, o patriota é ele. E nós somos os traidores. 

Desafio todos vocês a encontrarem um único socialista, em qualquer lugar da Terra, que algum dia tenha sido hóspede da Besta de Berlin – exceto, claro, como prisioneiros nas prisões da Besta – Liebknecht-pai e Liebknecht-filho, filho heroico de pai imortal."



[5] ZINN, Howard, A People's History of the United States, 1492-Present (New York: Harperperennial, 2003), p. 563. Antes de ser publicada a História do Povo dos EUA de Zinn [US People's History], o livro de Hofstader, American Political Tradition oferecia a talvez melhor leitura, em um só volume, da contranarrativa escrita por professor progressista, nos EUA, para usar em aulas de história dos EUA. Hofstader aparece citado como mentor do autor na Columbia University, no brilhante primeiro livro de Eric Foner, Free Soil, Free Labor, Free Men: The Ideology of the Republican Party Before the Civil War [Terra Livre, Trabalho Livre, Homens Livres: a Ideologia do Partido Republicano Antes da Guerra Civil] (Oxford University Press, 1970), vii.


[6] "Líderes e organizadores do movimento pelos direitos civis, animados por perspectivas socialistas foram elementos chave de tudo que aconteceu no movimento pelos direitos civis nos EUA, de 1955 a 1968. Dentre eles, A. Philip Randolph, Bayard Rustin e Martin Luther King, Jr. – figuras centrais da histórica Marcha sobre Washington por Trabalho e Liberdade, de 1963. Organicamente conectado à Marcha, havia um documento com o qual aqueles três líderes se haviam comprometido, "O Orçamento da Liberdade para Todos os Norte-americanos" [ing. The Freedom Budget for All Americans, apresentado em 1966. O Orçamento da Liberdade prometia o triunfo final pleno do movimento pelos direitos civis, que só seria alcançado adiante, quando se associassem além dos direitos civis, também o objetivo da justiça racial e o objetivo da justiça econômica para todos nos EUA. Essa meta final seria alcançada pela mobilização de segmentos massivos de 99% do povo dos EUA, numa poderosa cruzada democrática e moral que envolveria simultaneamente o movimento pelos direitos civis, o movimento trabalhista, as comunidades religiosas progressistas, estudantes em geral e a juventude, além das famílias e dos mais velhos [NTs].

Um comentário:

Mauro Costa Assis disse...

... o líder sindical radical Bill Haywood (Trabalhadores Industriais do Mundo - IWW), Mother Jones, e Tom Mooney, Joe Hill, trovador da IWW...