terça-feira, 10 de novembro de 2015

Reflexões sobre a situação em Portugal

08/11/2015, Stathis Kouvelakis [orig. ing. trad. gre.-fr., Agatha]

Só depois de muito hesitar, afinal me decidi a comentar desenvolvimentos recentes da situação em Portugal. Antes, ouvi com toda a atenção os argumentos da camarada Mariana Mortagua na plenária da conferência Materialismo Histórico em Londres, dia 9 de novembro. Também li a entrevista que Francisco Louçã, dirigente histórico do Bloco de Esquerda, deu a Ugo Palheta, do sítio Contretemps.



Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu



Contudo, a partir da experiência grega, cujas lições começam afinal a ser compreendidas pela esquerda radical europeia, tenho o sentimento de ter algumas responsabilidades, e de que me cabe levar um sinal fraternal de alerta aos camaradas da esquerda radical portuguesa (Bloco de Esquerda, BE; e do Partido Comunista Português, PCP). Compreendo que a situação está longe de simples para eles. 


Há pressão enorme do eleitorado para "dar uma chance" aos socialistas de formar governo e impedir que a direita constitua um governo de minoria, que Cavaco Silva e Passos Coelho obstinam-se em tentar implantar, com apoio pleno e total da União Europeia. Claro que governo socialista que dependa do apoio da esquerda radical e, pelo menos oficialmente, dedicado a anular algumas das medidas de arrocho [não é 'austeridade', palavra que, em português, tem conotações positivas; é sempre ARROCHO (NTs-Brasil)], logo se verá sob dois fogos, da UE e da classe dominante portuguesa. Nesse contexto, poder-se-ia compreender a tática de apoio "externo" a um governo socialista, a partir de um acordo1, apoio que se torna nulo se seus termos não forem respeitados pelos socialistas.



Os riscos mesmo assim são imensos e me parecem superar, em muito, os ganhos que se esperam. Há três modos de resumir isso.


1. Primeiro, que a ideia de que um partido como o PSP estaria pronto a enfrentar a UE e a burguesia nacional, para implantar medidas antiarrocho, ainda que modestas, parece-me completa fantasia. Mesmo partido da esquerda radical como o Syriza, em país que conheceu movimentos sociais de amplitude que Portugal desconhece, rapidamente se mostrou incapaz de manter a necessária firmeza na confrontação, para obter, que fosse, alguma mínima "concessão". 



Em termos bem simples: parece completamente impossível não ver que se trataria, no máximo, de um "relaxamento" do arrocho, para pôr-se em operação, sem atacar frontalmente o problema da dívida e da camisa de força imposta pela eurozona, e não passa de loucura imaginar, por um segundo, que o PSP estaria inclinado e/ou preparado para fazê-lo (na realidade, mesmo o BE e o PCP são relativamente cautelosos sobre essas duas questões). 



Quanto a isso, se deve ressaltar que no acordo tripartite PSP-Bloco-PCP a questão da dívida é inteiramente deixada de fora, e os dirigentes do PSP não param de declarar que o acordo em questão absolutamente não questiona os "engajamentos europeus" de Portugal.



2. Segundo, que a experiência grega igualmente demonstrou que, entre confronto em grande escala e capitulação, não há via intermediária. E isso nem tem a ver com algum conjunto de reivindicações anticapitalistas radicais, mas com um programa muito moderado, como o "programa de Tessalonica" baseado no qual o Syriza venceu as eleições em janeiro de 2015. 



Nem o atual governo do Syriza, que aceitou um Memorando aterrorizante e dedica-se desde então a implantá-lo, consegue arrancar qualquer ínfima concessão da UE, em reivindicação igualmente ínfima, como a proteção (condicionada e incompleta) para os imóveis de moradia familiar, que passariam a não poder ser tomados pelos bancos. As instituições da UE estarão mesmo ainda menos inclinadas a dar qualquer sinal de indulgência com governo do PSP que dependa do apoio da esquerda radical, e com certeza montarão chantagem comparável à que aplicaram ao primeiro governo do Syriza.



3. Bem evidentemente, apoiar um governo sem tomar parte nele é menos arriscado que alguma participação plena e inteira. É concebível retirar o apoio, se o governo ultrapassa determinadas "linhas vermelhas" – mas a experiência demonstra que definir as tais "linhas vermelhas" está longe de ser operação simples, e já se viu na Grécia, entre abril e junho, quando o governo não parava de fazer concessões em todas as frentes. Seja como for, é mais que provável que a direção do PSP utilizará o acordo com o Bloco de Esquerda e o PCP do mesmo modo como Tsipras comportou-se em relação à esquerda do seu próprio partido, quando entrou na espiral infernal das concessões que levaram à capitulação. A saber, submetendo-a a chantagem permanente, que consistia em repetir: "Vocês se atreveriam a derrubar governo de esquerda, o primeiro do gênero (e a novidade da configuração também vale para Portugal) nesse país?" E o cálculo provou-se certo: conseguiu encurralar a esquerda do Syriza até que, de algum modo, já fosse "tarde demais", quer dizer, até que o custo de sair do governo e, portanto, do partido, tornou-se alto demais para a oposição de esquerda, e ainda administrável para ele. Para fazer referência ao precedente histórico da Itália dos anos 1990, a experiência do apoio exterior da Rifondazione Comunista ao primeiro governo de "centro-esquerda" de Romano Prodi (1996-1998), apoio que foi retirado depois de dois anos, também demonstrou que o "sócio júnior" posicionado à esquerda tem muito mais a perder nesse exercício, que a força central da coalizão da "esquerda moderada".



No que concerne mais especificamente ao Bloco de Esquerda, do qual me sinto muito próximo, penso que essa decisão está em contradição com a lucidez com que esses camaradas extraíram as lições da tragédia grega e mudaram significativamente sua posição sobre o euro –, ponto destacada nas duas intervenções de Mariana e de Francisco que mencionei acima. Assim, na entrevista a Contretemps, Francisco destaca que "a crise grega mostrou que não se pode negociar uma restruturação da dívida, sem estar preparado para romper com o euro" e que ela "levou o Bloco a adotar posição mais crítica ante a chantagem e as ameaças feitas pelas autoridades europeias e, em particular, por Merkel”. 



notável artigo de Catarina Príncipe, outra personalidade do Bloco, publicado na revista Jacobin logo depois das eleições, também mostrou a inflexão sensível da orientação do partido, até então essencialmente "europeísta", no tumulto da capitulação de Tsipras.



É sempre muito delicado formular divergências com camaradas que fazem a luta em outro país. Mas temo que a esquerda radical portuguesa se comprometa com uma via que levará à dilapidação do precioso capital político que conseguiu acumular nos últimos tempos, sempre com tanta dificuldade. A extensão do desastre pelo qual passam o povo grego e a esquerda radical do meu país, bem como minha parcela pessoal de responsabilidade, porém, obrigaram-me a correr o risco.



Sempre esperando, é claro, estar enganado – como quando escrevo sobre o Syriza e a situação grega dos meses recentes.



Dixi et salvavi animam mea, como se diz nesses casos. 2



NOTAS


2. "Disse e salvei minha alma". Em lat. no original. A frase aparece na Bíblia, em Ezequiel 3, 19 e 21, na conclusão do seguinte trecho: "... se advertires o ímpio, e ele não se converter da sua malignidade e dos seus maus caminhos, eis que ele morrerá na sua maldade; mas tu estarás livre desta responsabilidade e culpa"]. A frase entra nos discursos marxianos, porque aparece no final de uma carta q Marx escreveu aos militantes do Partido Social Democrata dos Trabalhadores e da Associação Geral dos Trabalhadores, que se reuniam em Gotha, em 1875, para criar o Partido Social Democrata da Alemanha, e que só foi publicada depois da morte de Marx, em Crítica do Programa  de Gotha, em 1891, em livro editado por Friedrich Engels. Bem claramente, tem conotações de "aviso, porque é minha obrigação avisar" [NTs].

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