17/11/2017, Alastair Crooke, Consortium News
Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu
Aaron Miller e Richard Sokolsky, na revista Foreign Policy, sugerem "que o mais notável sucesso internacional de Mohammed bin Salman pode bem ser a operação de cortejar e conquistar o presidente Donald Trump e seu genro, Jared Kushner." Na verdade, esse "sucesso" talvez venha a ser o único sucesso de e MbS.
"Nem precisou de muito esforço", escrevem Miller e Sokolski: "Sobretudo, a nova amizade colorida refletiu oportuna coincidência de imperativos estratégicos".
"Nem precisou de muito esforço", escrevem Miller e Sokolski: "Sobretudo, a nova amizade colorida refletiu oportuna coincidência de imperativos estratégicos".
Trump, como sempre, estava ansioso para se distanciar do presidente Obama e de tudo que ele fez; e os sauditas estavam determinados a explorar a antipatia visceral de Trump pelo Irã – para reverter a sequência recente de derrotas que o reino sofreu.
Tão atraente parecia o prêmio (que MbS parecia oferecer), de matar três pássaros com uma só pedra (atingir o Irã; "normalizar" Israel no mundo árabe; e um acordo palestino), que o presidente dos EUA manteve os detalhes reservados só ao seu canal familiar. Aplicava assim uma lambada deliberada nos establishments de política externa e da defesa, ao deixar os canais oficiais completamente no escuro, só cogitando. Trump apostou pesadamente em MbS e em Jared Kushner como seu intermediário. Mas o grande plano de MbS caiu aos pedaços logo na primeira escaramuça: a tentativa de instigar uma provocação contra o Hezbollah no Líbano, à qual o Hezbollah reagiria tolamente, o que daria a Israel e à "Aliança Sunita" o pretexto esperado para atacar o Hezbollah e o Irã.
O Estágio Um simplesmente gorou, virou novelão, com o bizarro sequestro do primeiro-ministro Saad Hariri do Líbano, por MbS, que só serviu para unir os libaneses, em vez de dividi-los em facções em guerra, como o 'previsto'.
Mas o fracasso no Líbano tem importância muito maior que um simples erro de diretor de novelão. O fato realmente importante que se revelou no recente tropeço gigante de MbS não foi só que "o cachorro não latiu no meio da noite"* –, mas que os israelenses absolutamente não têm qualquer intenção de "latir" nem então nem nunca. Equivale a dizer que os israelenses não têm qualquer intenção de assumir o papel (nas palavras do veterano correspondente israelense Ben Caspit), de "porrete com o qual os líderes sunitas ameacem seus mortais inimigos, os xiitas (...). Nesse momento, ninguém em Israel e o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu menos que qualquer outro, tem qualquer pressa de pôr fogo no front norte. Fazer isso significaria ser sugado para dentro dos portões do inferno" (itálicos do comentarista).
A derrota na Síria
Sejamos bem claros: a chamada Aliança Sunita (principalmente Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, EAU, com o Egito já recuando) acaba de sofrer derrota acachapante na Síria. Não tem qualquer capacidade para atacar o Irã, o Hezbollah ou as Unidades de Mobilização Popular, UMP iraquianas (milícia xiita) – a menos que use Israel como "porrete". É possível que Israel tenha os mesmos interesses estratégicos que a Aliança Sunita, mas como Caspit observa, "os sauditas estão interessados em conseguir que Israel faça o serviço sujo por eles. Mas como logo se viu, nem todos em Israel apreciaram a ideia."
Para Caspit, o possível confronto entre a Aliança Sunita e a frente liderada pelo Irã seria "uma verdadeira guerra do Armagedon." Nessas palavras resumem-se todas as reservas dos israelenses.
Ao se recusa a "latir" (como na frase famosa de Conan Doyle, na novela de seu personagem Sherlock Holmes), Israel como que tirou a base sobre a qual se erguia o "grande plano" de Kushner, porque, se Israel tira o corpo, o que resta para discutir? Israel era precisamente "o porrete" também no plano de Trump. Zero porretes: nem a Aliança Sunita algum dia derrotará o Irã; nada de normalização entre sauditas e Israel; nada de iniciativa Israel-Palestina. O mau jeito de MbS, (a "temeridade", como disse um funcionário dos EUA) puxou o tapete de sob os pés da política dos EUA no Oriente Médio.
Por que Trump apostou tantas fichas no inexperiente Kushner e no impulsivo MbS? Ora, claro que, se o tal "grande plano" tivesse funcionado, teria sido um grande golpe de política externa – e construído acima dos profissionais de política externa e da defesa que sequer foram informados. Trump então se sentiria livre para se mover acima dos tentáculos do Establishment: teria alcançado grau consideravelmente alto de independência em relação àqueles "cérebros." Teria conseguido um golpe só dele, por seus próprios canais familiares, sem precisar dos conselheiros oficiais.
Mas, se a coisa toda se dilui em farsa, e MbS passa a ser visto nos EUA como doido, não como Maquiavel, o "sistema" (insultado) quererá vingança: as opiniões do presidente continuarão desacreditadas – sempre e cada vez mais a exigirem justificativas e "atenção especial".
MbS (e Kushner) podem ter causado dano muito mais grave ao presidente Trump: a aposta fracassada no desconhecido MbS pode escorrer e contaminar outras esferas – coisa como, consequência do que houve, os aliados dos EUA começarem a questionar a confiabilidade da avaliação que Trump faz sobre a Coreia do Norte. Em resumo, a credibilidade do presidente dos EUA sofrerá efeitos diretos de ele ter caído no conto do vigário de MbS.
Wishful Thinking [Desejar não é pensar]
Verdade é, para sermos justos, que há muito de fantasioso (até de servil) no modo como o ocidente trata a Arábia Saudita (o presidente Trump não é o único que se deixa cegar e subjugar pelos sauditas): a simples ideia de a Arábia Saudita se autoconverter em força motriz regional forte, "moderna", que poderia fazer frente ao Irã, já é, só ela, delirante – por mais que tenha sido amplamente aceita e repetida por comentaristas nos EUA. Sim, não resta qualquer alternativa ao reino, além de se transformar, agora que expira o prazo de validade do dividendo do petróleo, e isso pode significar, em teoria, que o reino tenha mesmo de encontrar outra rota.
Mas definir precisamente como o reino poderia se reinventar, sem ser esfacelado no processo, parece operação muito mais complexa que pretender algum suposto falso abraço com a "modernidade ocidental", ou algum suposto combate à "corrupção". Há óbices muito graves: a família é o estado; e o estado (e a riqueza do petróleo) é da família. Não há limites nem fronteiras demarcadas entre estado e família. A família goza dos privilégios e vantagens do nascimento (dependendo da maior proximidade ou distância do trono). E vantagens asseguradas ou apropriadas só refletem as necessidades de poder do monarca, que ajudem a manter seu absolutismo. Não há "maldito mérito"** nem igualdade nesse sistema, nem jamais alguém achou importante que tivesse.
O que alguém poderia definir como "corrupção", em sistema desse tipo? A Arábia Saudita sequer se preocupa com fingir que haja regras iguais para todos. A lei (e as regras) são simplesmente o que o rei diga que são, ou escreva e assine, dia a dia.
Mas antes, quando a Europa "gozou" de sistema semelhante, o significado de "corrupção" era bem claro: "corrupção" naquele tempo significava "você se meteu no caminho do rei" – isso, claramente e completamente isso. Assim sendo, se o mundo exterior supõe que MbS esteja empurrando a Arábia Saudita para uma modernidade ocidental, o mundo só pode estar querendo dizer que (i) ou MbS planeja eliminar toda "a família" (os 15 mil príncipes de sangue real) ou (ii) está-se encaminhando para algum tipo de cenário de monarquia constitucional, e sociedade de cidadãos regidos por leis, não mais de súditos sujeitados.
Nada nas ações de MbS sugere que esteja andando na direção (ii). Tudo sugere, isso sim, que quer recuperar e restaurar o aspecto absolutista da monarquia. E a modernidade que o interessa e que está buscando é do tipo que você compra virtualmente pronta para tirar da caixa e montar. Em outras palavras, o plano de MbS é comprar uma base industrial "numa caixa", tirar da prateleira e levar para casa, para substituir a falida renda que um dia o petróleo gerou.
A Visão 2030 nos diz que essa "base industrial" bem embalada, high-tech, deve gerar lucros de $1 trilhão ao ano, se tudo der certo... algum dia... Isso, para dizer que, sim, ela está sendo pensada como fonte substituta de renda. Para quê? Precisamente para manter "a família" – não para deslocá-la ou tirá-la do poder. Não é portanto projeto "reformista", no sentido ocidental pelo qual modernidade é "igualdade perante a lei" e direitos protegidos.
Esperanças delirantes
Ora, esse tipo de industrialização em alta velocidade não orgânica não é coisa simples de impor à sociedade (se você não for Josef Stálin). É processo caro e, como a história também nos ensina, é socialmente e culturalmente disruptivo. Custará muito mais que os anunciados $800 bilhões que MbS espera "recuperar" dos seus "hóspedes" (muitos dos quais foram arrastados sob coação física – noticiados 17 já foram hospitalizados, em consequência do tratamento que recebem no cativeiro.
Mas, se não é para ocidentalizar a economia, por que há tantos membros seniores da família que têm de ser "tirados do caminho"? Essa parte do "grande plano" parece estar relacionado talvez à razão pela qual MbS tanto queria "cortejar e conquistar" o presidente Trump (nas palavras de Miller e Solkosky). MbS é bem franco quanto a isso: há tempos diz ao presidente Trump que quer restaurar a antiga grandeur do reino; ser outra vez o líder do mundo sunita, o guardião do Islã. Para que isso seja possível, é preciso detonar o Irã em ascensão e o renascimento xiita, reduzi-los outra vez à posição de subordinados à liderança saudita.
A dificuldade está em que alguns, na família, certamente se opuseram a tal aventureirismo contra o Irã. MbS parece estar seguindo cegamente uma noção semelhante à que os neoconservadores neoliberais adotaram: i.e. o argumento Kristoliano [de Irving Kristol, guru 'midiático' dos neoconservadores e da 'nova' direita nos EUA (NTs)] segundo o qual você pode fazer (ou restaurar) um omelete de "hegemonia benevolente" sem quebrar ovo algum. E, como Miller e Sokolsky observaram, "não foi difícil convencer Trump" – a visão de MbS casava-se perfeitamente com os imperativos que Trump enfrentava (e seu animus contra o Irã). Trump logo tuitou obedientemente seu endosso ao ataque de MbS contra a "corrupção" saudita.
E aqui entra a terceira perna do "grande plano": Israel serviria como "porrete" para a aliança AS-EAU-EUA contra o Irã (para atrair Israel bastaria meter o Hezbollah na conta). A Arábia Saudita, em troca, reconheceria o estado judeu, e Israel daria aos palestinos "alguma coisa" – uma "alguma coisa" que poderia ser chamada de estado, mesmo que fosse muito menos que um estado. EUA e Arábia Saudita coordenariam movimentos para pressionar os palestinos a aceitar o que os EUA propusessem como "acordo".
Por que tudo saiu tão completamente errado?
Expectativas exageradas dos dois lados quanto a o que o outro lado poderia implementar realmente. Os dois lados acreditando piamente na retórica do outro lado. O amor sexual que os EUA nutrem por qualquer realeza (até pela saudita). Os laços familiares que ligam Kushner e Netanyahu. Pensamento delirante/desejante, de Kushner e de Trump, que os levaram a crer que MbS pudesse ser o instrumento capaz de restaurar não só o reino saudita como "policial" dos EUA no mundo islâmico, mas também a liderança dos EUA em todo o Oriente Médio.
Talvez Jared Kushner tenha acreditado em Bibi Netanyahu, quando sugeriu que a "normalização" de relações entre Arábia Saudita e Israel equivaleria, em termos de reciprocidade, a concessões que Israel disse-que faria ao tal 'quase-estado' que prometia aos palestinos (mas... mesmo depois de o gabinete de segurança de Israel já ter vetado as concessões conectadas àquela negociação e que estavam sendo discutidas naquele momento?).
Talvez Jared tenha acreditado em MbS, quando sugeriu que conseguiria mobilizar o mundo sunita contra o Irã – se EUA e Israel lhe dessem apoio (mas... mesmo depois que até o Egito já se opusera a qualquer ação para desestabilizar o Líbano?).
Talvez MbS tenha acreditado que Trump falava pelos EUA, quando lhe garantiu apoio (quando na verdade Trump só falava pela Casa Branca)?
Talvez MbS tenha pensado que Trump mobilizaria toda a Europa contra o Hezbollah no Líbano (quando, na verdade, os europeus já haviam decidido dar prioridade à estabilidade no Líbano)?
E talvez MbS e Kushner estivessem supondo que Netanyahu falasse por Israel, quando prometeu parceria na frente contra o Hezbollah e o Irã?
Mas... foi esse o "grande plano" acertado entre Netanyahu e Trump um dia antes de Trump dizer o que disse na ONU, contra o Irã, em setembro? De fato, embora o primeiro-ministro de Israel possa fazer guerra contra os palestinos com relativo à vontade e sem qualquer controle, o mesmo não se pode dizer nos casos em que o Estado de Israel seja posto em risco.
Tão atraente parecia o prêmio (que MbS parecia oferecer), de matar três pássaros com uma só pedra (atingir o Irã; "normalizar" Israel no mundo árabe; e um acordo palestino), que o presidente dos EUA manteve os detalhes reservados só ao seu canal familiar. Aplicava assim uma lambada deliberada nos establishments de política externa e da defesa, ao deixar os canais oficiais completamente no escuro, só cogitando. Trump apostou pesadamente em MbS e em Jared Kushner como seu intermediário. Mas o grande plano de MbS caiu aos pedaços logo na primeira escaramuça: a tentativa de instigar uma provocação contra o Hezbollah no Líbano, à qual o Hezbollah reagiria tolamente, o que daria a Israel e à "Aliança Sunita" o pretexto esperado para atacar o Hezbollah e o Irã.
O Estágio Um simplesmente gorou, virou novelão, com o bizarro sequestro do primeiro-ministro Saad Hariri do Líbano, por MbS, que só serviu para unir os libaneses, em vez de dividi-los em facções em guerra, como o 'previsto'.
Mas o fracasso no Líbano tem importância muito maior que um simples erro de diretor de novelão. O fato realmente importante que se revelou no recente tropeço gigante de MbS não foi só que "o cachorro não latiu no meio da noite"* –, mas que os israelenses absolutamente não têm qualquer intenção de "latir" nem então nem nunca. Equivale a dizer que os israelenses não têm qualquer intenção de assumir o papel (nas palavras do veterano correspondente israelense Ben Caspit), de "porrete com o qual os líderes sunitas ameacem seus mortais inimigos, os xiitas (...). Nesse momento, ninguém em Israel e o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu menos que qualquer outro, tem qualquer pressa de pôr fogo no front norte. Fazer isso significaria ser sugado para dentro dos portões do inferno" (itálicos do comentarista).
A derrota na Síria
Sejamos bem claros: a chamada Aliança Sunita (principalmente Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, EAU, com o Egito já recuando) acaba de sofrer derrota acachapante na Síria. Não tem qualquer capacidade para atacar o Irã, o Hezbollah ou as Unidades de Mobilização Popular, UMP iraquianas (milícia xiita) – a menos que use Israel como "porrete". É possível que Israel tenha os mesmos interesses estratégicos que a Aliança Sunita, mas como Caspit observa, "os sauditas estão interessados em conseguir que Israel faça o serviço sujo por eles. Mas como logo se viu, nem todos em Israel apreciaram a ideia."
Para Caspit, o possível confronto entre a Aliança Sunita e a frente liderada pelo Irã seria "uma verdadeira guerra do Armagedon." Nessas palavras resumem-se todas as reservas dos israelenses.
Ao se recusa a "latir" (como na frase famosa de Conan Doyle, na novela de seu personagem Sherlock Holmes), Israel como que tirou a base sobre a qual se erguia o "grande plano" de Kushner, porque, se Israel tira o corpo, o que resta para discutir? Israel era precisamente "o porrete" também no plano de Trump. Zero porretes: nem a Aliança Sunita algum dia derrotará o Irã; nada de normalização entre sauditas e Israel; nada de iniciativa Israel-Palestina. O mau jeito de MbS, (a "temeridade", como disse um funcionário dos EUA) puxou o tapete de sob os pés da política dos EUA no Oriente Médio.
Por que Trump apostou tantas fichas no inexperiente Kushner e no impulsivo MbS? Ora, claro que, se o tal "grande plano" tivesse funcionado, teria sido um grande golpe de política externa – e construído acima dos profissionais de política externa e da defesa que sequer foram informados. Trump então se sentiria livre para se mover acima dos tentáculos do Establishment: teria alcançado grau consideravelmente alto de independência em relação àqueles "cérebros." Teria conseguido um golpe só dele, por seus próprios canais familiares, sem precisar dos conselheiros oficiais.
Mas, se a coisa toda se dilui em farsa, e MbS passa a ser visto nos EUA como doido, não como Maquiavel, o "sistema" (insultado) quererá vingança: as opiniões do presidente continuarão desacreditadas – sempre e cada vez mais a exigirem justificativas e "atenção especial".
MbS (e Kushner) podem ter causado dano muito mais grave ao presidente Trump: a aposta fracassada no desconhecido MbS pode escorrer e contaminar outras esferas – coisa como, consequência do que houve, os aliados dos EUA começarem a questionar a confiabilidade da avaliação que Trump faz sobre a Coreia do Norte. Em resumo, a credibilidade do presidente dos EUA sofrerá efeitos diretos de ele ter caído no conto do vigário de MbS.
Wishful Thinking [Desejar não é pensar]
Verdade é, para sermos justos, que há muito de fantasioso (até de servil) no modo como o ocidente trata a Arábia Saudita (o presidente Trump não é o único que se deixa cegar e subjugar pelos sauditas): a simples ideia de a Arábia Saudita se autoconverter em força motriz regional forte, "moderna", que poderia fazer frente ao Irã, já é, só ela, delirante – por mais que tenha sido amplamente aceita e repetida por comentaristas nos EUA. Sim, não resta qualquer alternativa ao reino, além de se transformar, agora que expira o prazo de validade do dividendo do petróleo, e isso pode significar, em teoria, que o reino tenha mesmo de encontrar outra rota.
Mas definir precisamente como o reino poderia se reinventar, sem ser esfacelado no processo, parece operação muito mais complexa que pretender algum suposto falso abraço com a "modernidade ocidental", ou algum suposto combate à "corrupção". Há óbices muito graves: a família é o estado; e o estado (e a riqueza do petróleo) é da família. Não há limites nem fronteiras demarcadas entre estado e família. A família goza dos privilégios e vantagens do nascimento (dependendo da maior proximidade ou distância do trono). E vantagens asseguradas ou apropriadas só refletem as necessidades de poder do monarca, que ajudem a manter seu absolutismo. Não há "maldito mérito"** nem igualdade nesse sistema, nem jamais alguém achou importante que tivesse.
O que alguém poderia definir como "corrupção", em sistema desse tipo? A Arábia Saudita sequer se preocupa com fingir que haja regras iguais para todos. A lei (e as regras) são simplesmente o que o rei diga que são, ou escreva e assine, dia a dia.
Mas antes, quando a Europa "gozou" de sistema semelhante, o significado de "corrupção" era bem claro: "corrupção" naquele tempo significava "você se meteu no caminho do rei" – isso, claramente e completamente isso. Assim sendo, se o mundo exterior supõe que MbS esteja empurrando a Arábia Saudita para uma modernidade ocidental, o mundo só pode estar querendo dizer que (i) ou MbS planeja eliminar toda "a família" (os 15 mil príncipes de sangue real) ou (ii) está-se encaminhando para algum tipo de cenário de monarquia constitucional, e sociedade de cidadãos regidos por leis, não mais de súditos sujeitados.
Nada nas ações de MbS sugere que esteja andando na direção (ii). Tudo sugere, isso sim, que quer recuperar e restaurar o aspecto absolutista da monarquia. E a modernidade que o interessa e que está buscando é do tipo que você compra virtualmente pronta para tirar da caixa e montar. Em outras palavras, o plano de MbS é comprar uma base industrial "numa caixa", tirar da prateleira e levar para casa, para substituir a falida renda que um dia o petróleo gerou.
A Visão 2030 nos diz que essa "base industrial" bem embalada, high-tech, deve gerar lucros de $1 trilhão ao ano, se tudo der certo... algum dia... Isso, para dizer que, sim, ela está sendo pensada como fonte substituta de renda. Para quê? Precisamente para manter "a família" – não para deslocá-la ou tirá-la do poder. Não é portanto projeto "reformista", no sentido ocidental pelo qual modernidade é "igualdade perante a lei" e direitos protegidos.
Esperanças delirantes
Ora, esse tipo de industrialização em alta velocidade não orgânica não é coisa simples de impor à sociedade (se você não for Josef Stálin). É processo caro e, como a história também nos ensina, é socialmente e culturalmente disruptivo. Custará muito mais que os anunciados $800 bilhões que MbS espera "recuperar" dos seus "hóspedes" (muitos dos quais foram arrastados sob coação física – noticiados 17 já foram hospitalizados, em consequência do tratamento que recebem no cativeiro.
Mas, se não é para ocidentalizar a economia, por que há tantos membros seniores da família que têm de ser "tirados do caminho"? Essa parte do "grande plano" parece estar relacionado talvez à razão pela qual MbS tanto queria "cortejar e conquistar" o presidente Trump (nas palavras de Miller e Solkosky). MbS é bem franco quanto a isso: há tempos diz ao presidente Trump que quer restaurar a antiga grandeur do reino; ser outra vez o líder do mundo sunita, o guardião do Islã. Para que isso seja possível, é preciso detonar o Irã em ascensão e o renascimento xiita, reduzi-los outra vez à posição de subordinados à liderança saudita.
A dificuldade está em que alguns, na família, certamente se opuseram a tal aventureirismo contra o Irã. MbS parece estar seguindo cegamente uma noção semelhante à que os neoconservadores neoliberais adotaram: i.e. o argumento Kristoliano [de Irving Kristol, guru 'midiático' dos neoconservadores e da 'nova' direita nos EUA (NTs)] segundo o qual você pode fazer (ou restaurar) um omelete de "hegemonia benevolente" sem quebrar ovo algum. E, como Miller e Sokolsky observaram, "não foi difícil convencer Trump" – a visão de MbS casava-se perfeitamente com os imperativos que Trump enfrentava (e seu animus contra o Irã). Trump logo tuitou obedientemente seu endosso ao ataque de MbS contra a "corrupção" saudita.
E aqui entra a terceira perna do "grande plano": Israel serviria como "porrete" para a aliança AS-EAU-EUA contra o Irã (para atrair Israel bastaria meter o Hezbollah na conta). A Arábia Saudita, em troca, reconheceria o estado judeu, e Israel daria aos palestinos "alguma coisa" – uma "alguma coisa" que poderia ser chamada de estado, mesmo que fosse muito menos que um estado. EUA e Arábia Saudita coordenariam movimentos para pressionar os palestinos a aceitar o que os EUA propusessem como "acordo".
Por que tudo saiu tão completamente errado?
Expectativas exageradas dos dois lados quanto a o que o outro lado poderia implementar realmente. Os dois lados acreditando piamente na retórica do outro lado. O amor sexual que os EUA nutrem por qualquer realeza (até pela saudita). Os laços familiares que ligam Kushner e Netanyahu. Pensamento delirante/desejante, de Kushner e de Trump, que os levaram a crer que MbS pudesse ser o instrumento capaz de restaurar não só o reino saudita como "policial" dos EUA no mundo islâmico, mas também a liderança dos EUA em todo o Oriente Médio.
Talvez Jared Kushner tenha acreditado em Bibi Netanyahu, quando sugeriu que a "normalização" de relações entre Arábia Saudita e Israel equivaleria, em termos de reciprocidade, a concessões que Israel disse-que faria ao tal 'quase-estado' que prometia aos palestinos (mas... mesmo depois de o gabinete de segurança de Israel já ter vetado as concessões conectadas àquela negociação e que estavam sendo discutidas naquele momento?).
Talvez Jared tenha acreditado em MbS, quando sugeriu que conseguiria mobilizar o mundo sunita contra o Irã – se EUA e Israel lhe dessem apoio (mas... mesmo depois que até o Egito já se opusera a qualquer ação para desestabilizar o Líbano?).
Talvez MbS tenha acreditado que Trump falava pelos EUA, quando lhe garantiu apoio (quando na verdade Trump só falava pela Casa Branca)?
Talvez MbS tenha pensado que Trump mobilizaria toda a Europa contra o Hezbollah no Líbano (quando, na verdade, os europeus já haviam decidido dar prioridade à estabilidade no Líbano)?
E talvez MbS e Kushner estivessem supondo que Netanyahu falasse por Israel, quando prometeu parceria na frente contra o Hezbollah e o Irã?
Mas... foi esse o "grande plano" acertado entre Netanyahu e Trump um dia antes de Trump dizer o que disse na ONU, contra o Irã, em setembro? De fato, embora o primeiro-ministro de Israel possa fazer guerra contra os palestinos com relativo à vontade e sem qualquer controle, o mesmo não se pode dizer nos casos em que o Estado de Israel seja posto em risco.
Nenhum primeiro-ministro israelense poderá jamais se comprometer em possível conflito existencial (em que a existência do estado de Israel seja ameaçada), sem que conte com amplo apoio do establishment político e de segurança israelense. E o establishment israelense só considerará guerra nos casos em que a guerra que seja completa e claramente do interesse de Israel. Nunca, em nenhum caso, para agradar MbS ou Trump.
Ben Caspit (e outros comentaristas israelenses) confirma que o establishment israelense não vê a guerra contra o Hezbollah e o risco de conflito mais amplo, como interessantes para Israel.
O que sobra desse episódio é altamente significativo. O episódio deixou bem à vista que Israel atualmente não tem condições que lhe permitam considerar qualquer possibilidade de guerra na região (Caspit explica). Também deixa muito claro o quanto são rasas e ocas as ambições de MbS, de montar uma "Aliança Sunita" contra o Irã. E o episódio erodiu a política de Trump para conter o Irã.
Pelo menos por hora, pode-se esperar que Irã e Rússia consolidem o estado na Síria e estabilizem o setor norte. A "guerra do Armagedon" de que fala Caspit pode até acontecer – mas, talvez, não já.*****
Ben Caspit (e outros comentaristas israelenses) confirma que o establishment israelense não vê a guerra contra o Hezbollah e o risco de conflito mais amplo, como interessantes para Israel.
O que sobra desse episódio é altamente significativo. O episódio deixou bem à vista que Israel atualmente não tem condições que lhe permitam considerar qualquer possibilidade de guerra na região (Caspit explica). Também deixa muito claro o quanto são rasas e ocas as ambições de MbS, de montar uma "Aliança Sunita" contra o Irã. E o episódio erodiu a política de Trump para conter o Irã.
Pelo menos por hora, pode-se esperar que Irã e Rússia consolidem o estado na Síria e estabilizem o setor norte. A "guerra do Armagedon" de que fala Caspit pode até acontecer – mas, talvez, não já.*****
* Referência a um trecho de Silver Blaze, conto do personagem Sherlock Holmes de Conan Doyle. É um diálogo entre Sherlock e um detetive da Scotland Yard.
Gregory (Detetive da SY): "Há mais alguma coisa para a qual o senhor gostaria de chamar minha atenção?"
Holmes: "Sim. Para o estranho comportamento do cachorro na hora do crime."
Gregory: "Mas o cachorro nem latiu na hora do crime..."
Holmes: "Não latiu. É muito estranho."*****
** É expressão que os britânicos usam com frequência atribuída a William Lamb, 2º Visconde de Melbourne: "O que mais aprecio na Ordem da Jarreteira é que para ela o amaldiçoado mérito não conta" [NTs].
Nenhum comentário:
Postar um comentário