segunda-feira, 4 de março de 2019

A banalidade do Império

25/2/2019, Kenn OrphanCounterpunch

18/2/2019, Donald Trump, à comunidade de venezuelanos em Miami, na versão publicada pela Embaixada dos EUA em Cuba): “O socialismo, pela própria natureza, não respeita fronteiras. Não respeita fronteiras nem os direitos soberanos dos próprios cidadãos e de estados vizinhos. Sempre procura expandir-se, invadir e subjugar aos seus desejos populações inteiras.
Mas agora soou a hora final do socialismo em nosso hemisfério – e, francamente, também em muitos, muitos locais por todo o mundo. Os dias do socialismo e do comunismo estão contados, não só na Venezuela, mas também na Nicarágua e em Cuba”.
__________________________

Traduzido pelo Coletivo Vila Mandinga



Esse mês, a deputada Democrata recém chegada à Câmara de Deputados dos EUA Ilhan Omar criticou Trump por ter escolhido Elliot Abrams como seu enviado à Venezuela. Apesar de o questionamento ter sido muito suave, no que disse respeito ao imperialismo norte-americano (para  Ilhan Omar , “não há dúvidas” de que o objetivo dos EUA sempre foi apoiar a democracia e defender os direitos humanos), mesmo assim a deputada trouxe à baila o papel dos EUA nos massacres em El Salvador nos anos 1980s. Massacres nos quais Abrams está implicado. Também foi instrutivo, porque toda a cena foi imagem clara de o quanto está profundamente degradada a paisagem política norte-americana. 

Abrams é mentiroso oficialmente perdoado e reabilitado por ordem presidencial, que garantiu cobertura para alguns dos mais odiosos crimes de guerra do século 20. Que tenha voltado à tona agora, para comandar um golpe contra o governo democraticamente eleito de mais um país latino-americano faz prova da banalidade do Império Norte-americano e de o pouco que se deixa perturbar pela própria história de crimes e brutalidade e corrupção sem fim.

A história do imperialismo norte-americano nessa região, como tantas outras pelo mundo, pinga sangue. Em 1954, um exército mercenário contratado pela United Fruit Company e com assistência que lhe deu o governo dos EUA encenou um golpe militar que derrubou o governo democraticamente eleito, orientado para reformas, do coronel Jacobo Arbenz Guzman. Um coronel Carlos Castillo Armas foi imposto como presidente à Guatemala, e assim começou uma ditadura militar que atravessaria toda a segunda metade do século 20. Os maias nativos, vistos há muito tempo como entidades sub-humanas pela elite governante, descendente de espanhóis, uma mancha de suprematismo racista que lá está, até hoje. Alguns maias e outros protestaram contra essa tirania neofeudal, mas todos os maias foram punidos coletivamente, culminando num genocídio em várias etapas que matou mais de 200 mil pessoas e criou milhões de refugiados. Foi um presságio da atual crise de migrantes que tem por cenário, hoje, a América do Norte.

Israel também foi cúmplice no genocídio, vendendo armas e treinando mercenários. De fato, o general Rios Montt, militar que é acusado de ter comandado o genocídio, prestou muitos agradecimentos pessoais aos EUA e a Israel, pelo muito que o ajudaram nos serviços de estupro, tortura e morticínio sistemáticos da população nativa do país. Treinado na infame Escola das Américas, Montt – que morreu em abril do ano passado, foi pastor cristão evangélico e amigo pessoal dos telepregadores evangelistas ultraconservadores Jerry Falwell e Pat Robertson. 

É informação relevante, dado que os EUA têm hoje, no comando político, outros cristãos fundamentalistas como Pence e Pompeo. Montt também foi inquestionavelmente apoiado e muito elogiado pelo presidente Ronald Reagan. “Presidente Ríos Montt” – disse Reagan –, “é homem de grande integridade pessoal e firme comprometimento com o país. Sei que deseja melhorar a qualidade da vida de todos os cidadãos da Guatemala e promover justiça social.”

É interessante observar que pouca coisa mudou na conversa dos imperialistas sejam liberais sejam conservadores. Mais uma vez, nem isso tem qualquer originalidade. “Justiça social” e “direitos humanos” são frequentemente usados para justificar “intervenções humanitárias” – expressão-código para encobrir o que sempre foi genocídio e limpeza étnica imperiais. Hoje as mesmas palavras estão na boca não só de Trump, mas também de toda a mídia-empresa e também nos discursos da chamada ‘resistência’ dentro do Partido Democrata, quando falam da Venezuela. Vale a pena portanto rememorar essa página sinistra da história da Guatemala, para que se veja o que, precisamente, a expressão “intervenção humanitária” existe para encobrir.

Segundo um relatório de 2004 do massacre, redigido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, as forças de Montt:


“(...) separaram as crianças e as mulheres jovens de 15 a 20 anos. E o massacre começou. Primeiro torturaram os velhos, acusados de serem ‘guerrilheiros’; depois lançaram granadas dentro da casa e dispararam as armas. Por fim espalharam gasolina em torno da casa e a incendiaram (...) [Da seguinte, Buenaventura Manuel Jeronimo] saiu do lugar onde se escondera, e viu a destruição que as forças de Montt haviam provocado. Com Eulalio Grave Ramírez e seus irmãos Juan, Buenaventura e Esteban, debelaram as chamas que ainda consumiam os cadáveres. Os que não estavam completamente carbonizados mostravam sinais de tortura, também os corpos despidos das mulheres mais jovens.”


Outro relato, esse de um sobrevivente:


“Depois de assassinar nossas esposas, passaram a massacrar nossos filhos. Pegavam as crianças pelos pés e batiam a cabeça delas contra os andaimes da casa. Eu tinha seis filhos. Todos foram mortos assim, e também minha esposa. (...) Até o dia em que eu morrer meu coração chorará por eles.”


O general Mott foi acusado de genocídio, mas seus advogados, regiamente pagos conseguiram interromper o devido processo legal do tribunal, soterrando-o com tecnicalidades. Morreu sem jamais ter enfrentado as consequências de seus crimes monstruosos.

Repita a mesma história em El Salvador, Honduras e em incontáveis outros locais e você verá emergir um quadro de genocídio coordenado, apoiado e financiado pelos EUA. As histórias são sempre as mesmas – estupro de meninas e mulheres jovens, tortura de crianças e velhos, desaparecimento de meninos e adultos, queima de incontáveis vilas e covas coletivas. Todas essas histórias são sistematicamente apagadas pela máquina de propaganda imperial, especialmente quando envolvem negros e pobres. 

Hoje vemos acontecer o mesmo fenômeno, na enxurrada de histórias, nos veículos de comunicação de massa, que só fazem cacarejar o que o Departamento de Estado lhe ordena que cacarejem sobre o que se passa na Venezuela. Os mais pobres, os negros e as populações indígenas que vivem na Venezuela e que muito se beneficiaram das reformas introduzidas pelo governo bolivariano, é como se tivessem ficado repentinamente invisíveis. Suas manifestações e marchas não recebem nenhum tipo de cobertura, suas vozes são silenciadas. Mas os protestos das classes médias e dos milionários são infindavelmente passados e reprisados em todos os noticiários, sempre apresentados em tom de simpatia.

Mas o Império Norte-americano quer construir muros para cercar o próprio estado fracassado, para impedir a entrada dos refugiados gerados por suas políticas externas beligerantes e suas políticas econômicas de privilégio, enquanto os EUA vão simultaneamente construindo laços com outros governos despóticos e/ou regimes repressivos, num esforço para garantir o monopólio sobre as derradeiras fontes de capital que restam no planeta. 

O interesse dos EUA em “direitos humanos” é dissimulação é farsa, se se sabe que entre os aliados dos EUA está o assassino rei da Arábia Saudita medieval, que reprime cruelmente o próprio povo e comanda a guerra genocida contra o Iêmen; ou Netanyahu, o abertamente racista primeiro-ministro do regime de apartheid e limpeza étnica que governa Israel; ou o nacionalista Modi, que comanda a implacável ocupação da Caxemira; ou o recém eleito governo fascista de Bolsonaro no Brasil, que jurou destruir a floresta amazônica e eliminar todos os povos nativos que apareçam no caminho da destruição, e que agora se posiciona para fazer o serviço sujo que Washington lhe ordena que faça contra a Venezuela. 

Mas em todos esses países, a narrativa oficial é carregada sempre da mais repugnante banalidade. Todos esses países são apresentados ou como “democracias” ou como “aliados contra o terrorismo” ou como nação que “partilha interesse semelhantes”.

Mas as elites governantes começam a ver que o capitalismo começou a se tornar indefensável para todos, exceto os iludidos em estado terminal. 

Tudo isso é especialmente verdade nos EUA, onde a desigualdade social só cresce. Sites como GoFundMe são criados para tentar aplacar alguns efeitos superficiais do fracasso dos projetos insuficientes de atenção à saúde e à educação, e cada vez mais pessoas têm de trabalhar em mais de um emprego, com salários que só diminuem, e são obrigadas a morar cada vez mais distantes dos locais de trabalho, para encontrar aluguéis que possam pagar. Todos compreendem que a pressão aumenta contra as políticas pró capital, que favorecem as grandes empresas e os mais ricos. O recente surto paranoico de Trump contra o socialismo, só faz mostrar o terror que consome as entranhas dessa gente. Em recente discurso sobre a Venezuela, para alguns de seus alucinados e pervertidos fãs, disse o presidente dos EUA:


“Um governo socialista tirânico nacionalizou indústrias privadas e encampou empresas privadas. Mergulharam em confisco massivo de bens, fecharam mercados livres, proibiram a livre manifestação do pensamento e puseram em andamento uma incansável máquina de propaganda, eleições viciadas, usaram o governo para perseguir adversários políticos e destruíram o estado de direito imparcial. Em outras palavras, os socialistas fizeram na Venezuela tudo que socialistas, comunistas, ditadores totalitários sempre fazem sempre que têm chance de chegar ao governo. Os resultados foram catastróficos” (19/2/2019, Donald Trump, em comício eleitoral na Florida International University, Miami, Florida).


Claro que governos capitalistas perpetraram todos esses crimes quando legalizaram os monopólios que devastam o pequeno comércio em todo o mundo. “Fechar livres mercados” e “confisco massivo de bens” são palavras-senha para que os ricos ponham-se a protestar contra todos os impostos e cada vez mais pratiquem todos os crimes tributários. “Livres mercados”, aliás, não passa de mote de repetição, sempre sem sentido, para obscurecer o poder das pequenas elites endinheiradas que controlam completamente todos os mercados. Mais uma vez, a arenga de Trump, sem qualquer base na realidade, desafia o que tantos veem cada vez mais claramente diante dos olhos. 

Há cerca de um ano, o relator especial da ONU, Philip Alston, publicou relatório sobre o vergonhoso estado em que sobrevive a república norte-americana. Lá se aprende que mais de 40 milhões de norte-americanos vivem na miséria.

Mas a conversa de Trump sobre repressão da livre manifestação do pensamento, propaganda, perseguição de adversários políticos e o estado de direito é perfeita loucura. Os EUA, sim, empregaram e empregam todas essas táticas de repressão violenta, sempre a serviço de bancos e das grandes empresas – e no governo Trump, como também, antes do governo Trump nos EUA.

No mesmo comício na Florida International University para a comunidade de venezuelanos na Florida (aqui na versão publicada pela Embaixada dos EUA em Cuba), Trump continuou:


“O socialismo, pela própria natureza, não respeita fronteiras. Não respeita fronteiras nem os direitos soberanos dos próprios cidadãos e de estados vizinhos. Sempre procura expandir-se, invadir e subjugar populações inteiras aos seus desejos. Agora soou a hora final do socialismo em nosso hemisfério – e, francamente, também em muitos, muitos locais por todo o mundo. Os dias do socialismo e do comunismo estão contados, não só na Venezuela, mas também na Nicarágua e em Cuba.”


Claro que qualquer um medianamente bem informado, que seja, sobre o imperialismo, logo vê que é fala de alguém que delira sobre o mundo, não que olha e pensa sobre o mundo real. Os EUA têm cerca de 900 bases militares espalhadas pelo mundo e, sempre em nome da liberdade, já invadiram e continuam a invadir dúzias de países, abertamente e clandestinamente [“Países invadidos pelos EUA desde a 2ª Guerra Mundial”].

Venezuela, Nicarágua e Cuba jamais invadiram país algum. Mas os fãs de Trump e da banalidade do imperialismo norte-americano amam ouvir esse tipo de mentiras. Quanto mais banal, quanto maior a mentira, mais esses pervertidos aplaudem. 

Bizarro e muito importante é que a atualidade desses medos de que os EUA são hoje porta-vozes desmente o próprio dogma central do capitalismo no século 21: a fé cega no sucesso do capitalismo a partir do colapso da URSS. Afinal, pelo que ensina a propaganda norte-americana, ali teria terminado para sempre a “ameaça vermelha”!

O que Trump faz hoje – como antes dele fizeram os Clintons e Obama – é mostrar a quem saiba ver que o capitalismo não saiu assim tão vitorioso da 2ª Guerra Mundial, como ensinam as máquinas jornalísticas de propaganda.

Reagan ordenou a Gorbachev que “derrube esse muro” – assinalando, supunha ele, erradamente, o predomínio moral do capitalismo e do Império Norte-americano sobre uma URSS sitiada. Agora, Trump tem de reerguer o muro, com urgência frenética, porque o Império norte-americano produziu crise monstro de refugiados, precisamente nas regiões que dizia ter controlado. Mas é como se todos os fantasmas da Guerra Fria, que tanto medo inspiraram sempre aos capitalistas imperialistas, se tivessem abrigado na Venezuela, República Popular Democrática da Coreia (“Coreia do Norte”) e Irã, de onde hoje novamente voltam a assustar os EUA... coincidentemente, nações ricas em combustível fóssil e em minérios estratégicos. 

Também muito eloquente é que tantos na esquerda dos EUA tenham-se alinhado como homem que tanto, ao longo dos anos recentes, gostavam de chamar de racista, suprematista pró-brancos e simpatizante do nazismo. Só se explica porque os Democratas e grande parte da esquerda nos EUA abraça, como sua única fé, o imperialismo norte-americano.

O Império Norte-americano, isso sim, talvez se aproxime da fase final. Ameaçado como tudo e todos no planeta pelo caos da mudança climática e pelas ameaças que crescem contra a biosfera, o Império Norte-americano também enfrenta a silenciosa, mas massiva deserção das nações que se vão distanciando do EUA-dólar; além dos conflitos socioeconômicos internos provocados pelas políticas neoliberais que roubaram todos os direitos dos trabalhadores e dos cidadãos, para favorecer empresas e o estado policial/de vigilância. 

Tudo isso só significa contudo que o Império Norte-americano se tornará cada vez mais belicoso e mais delirante, conforme avança em espiral para o fundo do poço. A defesa obcecada do capital, sua única razão de existir, já não está sendo eficazmente ocultada pela torrente de imbecilidades de sempre. Fato é que os líderes capitalistas vivem num estado de consciência alterada, embriagados na húbris que acompanha todos os exércitos pervertidos dos EUA pelo mundo – as forças militares mais caras do planeta. Eis porque só sabem repetir, como hipnotizados, que “todas as opções estão sobre a mesa”... como se alguém racional ainda considerasse qualquer outra opção além do mesmo velho militarismo norte-americano ensandecido de sempre. 

O mundo teve exemplo disso quando John Bolton, muito mais escravo que senhor da guerra, disse em entrevista à Fox News que estava em contato com várias grandes empresas petroleiras, todas ansiosas para pôr as mãos no petróleo venezuelano; também elogiou o presidente fascista do Brasil e saiu-se com aquela cômica “troika do terror”, que apenas requentava o “eixo do mal” de Bush (filho).

Mas há pouco motivo para rir, quando se considera o preço que custa o imperialismo norte-americano. Custa caro. E esse preço é pago em sangue dos mais pobres, dos povos originários, dos inocentes em geral, e do próprio planeta Terra.

Que ninguém se surpreenda com a ressurreição de figuras como Elliot Abrams, voltando das páginas mais sinistras da história dos EUA, especialista em construir modos de encobrir os crimes do Império. Porque, afinal de contas, o imperialismo é assassino, imoral e cruel, mas nada tem de original. Essa banalidade é que o faz tão desgraçadamente traiçoeiro.*******

Um comentário:

pedro disse...

Os eua dizem ao mundo (e o trump ao bolsonaro) que o comunismo e o socialismo devem e serão extintos. Mas o maior parceiro comercial dos eua é a China. Legal né?