segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Soberania e coisa pública: da história romana à nossa história

11/8/2018, Jacques Sapir, RussEurope-en-ExilLes Crises](excertos)




Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu

Sobre o livro da Prof. Claudia Moatti: Res publica
(Debates sobre a soberania revelados pelas evoluções das representações da "coisa pública")

"Nesse 'povo' que a elite senatorial põe sob sua tutela pode-se encontrar um eco longínquo da vontade, hoje, entre 'os que sabem', de pôr sob tutela o povo, desde que aqueles 'sapientes' comprovem capacidades didático-pedagógicas (Hoje ditas "capacidades de kumunicação" [pano rápido]).

(...) Será preciso o Império pôr-se a caminhar na direção da cristandade, para que essa referência ao povo desapareça lentamente e a ideia da soberania perca o lugar para a ideia de um pacto entre Deus e o Imperador. Mas essa já é outra história…"
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"A res publica transformada em coisa do Senado, só faltava um passo para que virasse coisa do imperador."
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Claudia Moatti, professora em Paris-8 é especialista em história intelectual, personalidade reconhecida do mundo universitário francês. Agora, acaba de publicar uma obra sobre a evolução da concepção da "coisa pública" – da res publica – no mundo romano [1]. É obra que, certamente, se converterá em referência. Trata não só de interpretações da noção de "coisa pública", mas também de noções de legitimidade e de direito. Por trás disso tudo se ouve claramente a questão da soberania. (...)


O primeiro ponto sobre o qual se debruça esse livro é a definição da "coisa pública". Claudia Moatti recorre a Cícero, que ela cita  [12]:  [aqui traduzido apenas para ajudar a ler (NTs)] "todo o povo que como tal se reúna em multidão (…) toda cidade que é a organização do povo; toda coisa pública (res publica) que é, como já disse, a coisa do povo, deve ser dirigida por um conselho para que possa durar"  [13]. O que aqui importa é o modo como Cícero hierarquize a passagem da "multidão" a povo, pela existência de interesses comuns, pois apresenta a Cidade como o quadro organizador desse "povo". Claudia Moatti sublinha o lado notável do texto de Cícero por sua tentativa de clarificar os conceitos [14]. Lembrará então que a "Cidade" não designa qualquer vila simples (oppidum), mas, sim descreve o quadro no qual se organiza um "povo" de cidadãos, um povo cuja presença é obrigatória para distribuir a justiça  [15] e para editar leis. A cidadania é aqui noção fundamental. 

Pertencer ao "povo romano" é ter o direito de agir em interação com os outros cidadãos sobre o território da "Cidade". São portanto os cidadãos que constituem a "Cidade"  [16]. A res publica é pensada assim sempre em relação com o "povo" – e define as relações e os conflitos no seio desse "povo". Desse ponto de vista, é também a legalidade jurídica dos cidadãos; a legalidade central é a que se encontra na fórmula arcaica  [Cícero] populus plebsque (povo e plebe). Com essa igualdade jurídica, o "povo" ganha realmente um significado político e constitui-se como ator da política  [17]. É portanto importante não esquecer que nos primeiros tempos da República o povo romano é ao mesmo tempo um ator na cidade e entidade para as relações entre a cidade e o estrangeiro [18]. Conservemos aqui essa importante decisão, que confirma a centralidade da relação interna/externa. Só pode haver portanto relações políticas e jurídicas, conflitos também em torno dessas relações no seio de uma entidade soberana e distinta das demais. A noção de soberania é pois primordial, mas também é central para a existência da res publica. Mas essa "coisa pública" só pode constituir-se mediante a legalidade jurídica dos cidadãos que lhes assegura (ou deve assegurar) um direito igual à participação política e às escolhas na vida da "Cidade" [19].

De fato, Cícero, em seu De Officis, analisa a pluralidade de possíveis formas de organização, sejam ligadas ao nascimento ou ao idioma. Mas, para ele, a forma decisiva é a que una os cidadãos. Essa forma não é simplesmente elemento de descrição: é ela que define uma sociedade política [20], e nesse ponto é que uma "Cidade" diferencia-se de uma vila, simples oppidum. É preciso pois considerar dois níveis de raciocínio. Para qualquer simples descrição, pode-se proceder da ascendência para a língua. Mas para a análise que tem necessariamente de ter uma dimensão dinâmica, só conta o conceito de cidadão, formando um povo no quadro de uma cidade política. 

A noção de "povo" é portanto principalmente política, não étnica [21]. 

Assim sendo, é preciso compreender o que constitui um "povo". Quando falamos de um "povo" não falamos de alguma comunidade étnica ou religiosa, mas dessa comunidade política de indivíduos reunidos que toma em suas mãos o próprio futuro [22] – isso, pelo menos, nas origens da República romana. O "povo" do qual se fala é um povo "para si", que se constrói na ação; não é povo "em si" – que não passaria de uma "multidão". 

Referir-se a essa noção de soberania, desejar defendê-la e dar-lhe vida, definir-se como soberanista, implica compreender que vivemos em sociedades heterogêneas e que a unidade dessas sociedades é construída – e construída, sobretudo, politicamente. A unidade de sociedades heterogêneas jamais é dada nem natural [23]. (...)

Portanto, a definição de soberania evoluirá com os conflitos sociais pelos quais Roma passará, em particular a partir do século 2º aC. Surgirá então uma definição bem mais conservadora do que seja o "interesse comum", a qual, em grande medida, é codificada por Cícero [24].

Papel do conflito social na vida da cidade e na construção da "coisa pública"

Essa transformação da noção da "coisa pública" que Claudia Moatti descreve abundantemente decorre dos numerosos conflitos que ressoam os quais ressoa a república romana [25]. Mas esses conflitos foram também um mecanismo de construção das instituições dessa mesma república [26]. A autora observa então que as secessões da Plebe no início da República permitiram limitar o poder da aristocracia, moderar os aspectos de maior desigualdade da República original e pouco a pouco abriram novos espaços de liberdades públicas [27]. De fato, os membros da Plebe foram autorizados a se apresentar à Questura [ap. delegacia de polícia] em -409, às magistraturas montadas em -368, a candidatar-se e ser eleitos censores em -351 e pretores em -336 [28].

A autora então acrescenta: "Assim a análise em partes repousa sobre uma visão plural e aberta da cidade, cuja unidade está constantemente em construção (...)" [29]. De fato, o conflito é aí parte do jogo político; é o conflito que "constrói" a res publica. Esse conflito vai-se dar mediante a oposição entre os que chamamos "os populares", ou representantes do partido "do povo" e os optimates que representam a elite senatorial [30]. O quadro social e econômico das terras confiscadas aos vencidos, que constituem ager publicus [terra pública] passa a ser central [31]. De fato, nessa época a ausência ou a imprecisão do cadastro permite que os mais ricos abusem [32]. Desse desequilíbrio econômico e social, brota a vontade do Senado, mais evidente a cada incidente, de se apropriar da soberania e da iniciativa de produzir leis [33]. 

Esses conflitos têm origem nas consequências sociais da 2ª Guerra Púnica (contra Cartago), mas originam-se também da expansão de Roma. A passagem da pequena propriedade agrária às grandes explorações cuja mão-de-obra é composta essencialmente de escravos, mas também a apropriação das terras públicas pela aristocracia, criam situação insustentável [34]. Contudo, a esse conflito que é "interno" ao espaço público romano, vem juntar-se o conflito ligado à longa e difícil integração dos "italianos" – os membros das tribos submetidas por Roma, que adiante se aliaram a Roma, mas aos quais Roma negou por longo tempo a cidadania [35].

Os conflitos são pois legítimos, desde que possam desembocar em compromissos e acordos que permitam superá-los. Esse o famoso comentário de [François] Guizot sobre a história das instituições que caracterizava a "civilização europeia" em 1828 [36]. Em sua sétima lição, Guizot analisa o processo de libertação das comunas, o que o conduziu à célebre conclusão de que "a luta, em vez de se tornar princípio de imobilidade, foi causa de progresso; as relações das diversas classes entre elas, a necessidade que tinham de combater entre elas e de ceder umas às outras, a variedade de seus interesses e de suas paixões, a necessidade de vencer-se sem poder superar, daí saiu o princípio mais enérgico, mais fecundo do desenvolvimento da civilização europeia [37]." Essa ideia de que o conflito é fator de desenvolvimento, de construção de instituições, foi depois retomada pelos Commons que trabalhavam sobre as lutas dos pequenos camponeses norte-americanos contra as grandes companhias [38]. 

Essa ideia corresponde hoje a um dos pontos mais importantes da teoria institucionalista. É pena que Claudia Moatti não tenha feito referência em seu livro aos autores que lhe teriam permitido traçar um paralelo esclarecedor sobre essa questão. 

Duas visões da "coisa pública"

Essa res publica dará lugar, mediante os conflitos, a duas representações antagônicas. Uma vê na res publica o conjunto de assuntos públicos surgidos das interações entre os cidadãos; e a representação que vê na res publica uma forma, o "grande negócio" [fr. la "grande affaire"] [39]. Essa tendência a idealizar a res publica conduz assim a pretender que ela seja indivisível e a proclamar que o conflito é necessariamente nefasto [40]. 

Mas o problema não está só numa fetichização da res publica à qual corresponde uma reificação do povo. Essa tendência concretiza-se em duas visões opostas dos magistrados, mas também – implicitamente – em duas visões do exercício da soberania [41]. Claudia Moatti mostra bem como a definição de um espaço político homogêneo e estável corresponde à ideologia das elites senatoriais que se recusam a todo e qualquer compromisso, e que se engajam cada vez mais, a partir do episódio dos Gracos (-135 até -123) numa escalada da violência [42]. 

Assim como a primeira visão (marcada pela assimilação da res publica no conjunto dos negócios políticos concernentes aos cidadãos) declara que os magistrados e o Senado estão in potestas populi (sob o poder do povo) [43], a segunda visão mostra os magistrados como agentes que recebem do povo o poder (potestas) para o dirigir [44]. 

De fato, quanto mais o real for devastado pelos conflitos internos e marcado por um endurecimento da elite senatorial que se recusa a qualquer concessão, mais se afirmará a tendência a se construir uma res publica ideal e bem ordenada, da qual todo o conflito está excluído[45].

Cícero será o principal representante e ao mesmo tempo ator dessa transformação. 

Cícero elaborará, ao longo de seus escritos, a res publica como entidade abstrata e não mais como a soma das interações pelas quais os cidadãos definem interesses comuns [46]. Ao mesmo tempo, Cícero construirá um discurso no qual os magistrados representam um "povo" jurídico, mas que já não é um povo social [47]. O duplo processo de fetichização da coisa pública e de reificação do povo estará assim completado. 

Isso conduziu Cícero a considerar que todos os que se levantam contra o Senado seriam "sediciosos", e que seria preciso fazer contra eles guerra total [48]. O vocabulário da guerra passa então a encher todo o espaço cívico. Em De re publica, aparece a metáfora da tutela [49], que será retomada em De officis [50]. O povo passa a ser considerado o filho menor de idade do Senado, num paralelo com o direito privado e em referência aos poderes do paterfamilias romano. Mas outro paralelo vem à mente. 

Nesse "povo" que a elite senatorial põe sob sua tutela pode-se encontrar um eco longínquo da vontade, hoje, entre "os que sabem", de pôr sob tutela o povo, desde que esses 'sapientes' comprovem capacidades "didático-pedagógicas". O paralelo é tanto mais tentador, se que vê que, pouco a pouco, as decisões do povo são contestadas, até mesmo revogadas – como se viu acontecer [na França] no caso do referendo de 2005 e do Tratado de Lisboa que veio depois, em 2007. Mas, onde Cícero usava uma metáfora jurídica, que em boa medida permanece no campo do político, porque o Direito é também uma expressão do político, a oligarquia hoje utiliza a extensão de alguma legitimidade científica (mais exatamente: "pseudocientífica") num campo com o qual ela nada tem a ver [51]. 

Daí, voltando ao livro de Claudia Moatti e a Roma, decorre uma visão da liberdade entre desiguais que rompe precisamente com a igualdade jurídica proclamada entre os cidadãos [52]. Sem dúvida se tem aí um pacto cívico muito diferente do pacto democrático.


Quem é soberano: o povo ou o Senado?

Daí em diante se torna impossível escapar dessa pergunta: quem realmente detém a soberania. É mais uma pergunta que também se impõe hoje. Mas, nas origens da República romana, a pergunta parecia dividida. Mario Bretone mostra que a vontade do povo (iussum populi) afirmava-se mediante a eleição de magistrados (questors) desde a época real [53]. Mas no século 2º aC, a questão se torna central nos debates políticos [54]. 

A pergunta, como Claudia Moatti faz lembrar [55], foi posta quando da eleição de Cipião Emiliano ao Consulado, embora se apresentasse, de fato, à instância inferior da edilidade. Poderia o povo transpor os limites postos pela Lex villia annalis que fixava o cursus honorum ? De fato, o povo era dito então "mestre dos comícios", vale dizer, mestre da ordem do dia das assembleias populares [56]. O conceito da "soberania popular", que para alguns teria sido "inventado" pela Revolução Francesa, já existia em Roma, e traduzia-se por uma modalidade de controle popular sobre os magistrados [57]. Havia então, garantido, um discurso que estabelecia a primazia do "povo" – como no caso no qual é o "povo" que decide que um homem possa ser eleito para funções mais altas do que aquelas às quais se apresentava.

Uma parte dos conflitos giram pois em torno da responsabilidade política dos magistrados [58]. A questão central não é apenas a emergência de uma responsabilidade política do magistrado, ao lado de sua responsabilidade privada, mas, sim, determinar quem podia pôr em questão essa responsabilidade política [59]. Ora, a passagem da responsabilidade moral à responsabilidade política do magistrado [60] é um dos contextos no qual se travava o braço-de-ferro entre o povo e o Senado, na questão da soberania [61]. 

Esse ponto é importante, porque estabelece a separação necessária entre a esfera pública e a esfera privada. O magistrado, como delegatário da soberania do povo, pode ser assim dispensado do dever de responder por seus atos privados [é dispensado "de sua responsabilidade privada" (NTs)]; e passa a ficar submetido a uma avaliação política dos seus atos. Mas um magistrado só pode ser demitido em nome do superior interesse da res publica [62]. A importância desse ponto está em que assim se estabelece a primazia do político. 

Mais uma vez é debate do qual se ouvem hoje ecos evidentes. Claudia Moatti explica então o que se disputa no debate sobre o dever dos magistrados de só serem avaliados politicamente por seus atos e, sobretudo, a quem devem prestar contas, a quem devem responder (quem os pode interrogar; diante de quem, nesse sentido, são responsáveis [NTs]) [63]. De fato, se a responsabilidade política exclui toda a responsabilidade "privada", vê-se que a res publica paira acima [fr. est en surplomb] das regras normais [64].

A essa tradição da soberania do povo opõe-se a tentativa, pelo Senado, de se apropriar da soberania. Essa tentativa de apropriação passa pela "santificação" da res publica [65]. De fato, no 4º capítulo, intitulado "coisa do Senado" [fr. "chose du Sénat"], Claudia Moatti mostra bem o modo como essa soberania do povo será capturada, e depois apropriada, pelas elites senatoriais.

Uma história cheia de ruídos e fúria 

Entra-se então naqueles "tempos de problemas" que vão do século 2º aC, até o estabelecimento do Império. São tempos de guerra civil, tempos de extrema crueza. Emerge imediatamente a figura dos "ditadores". Diferente do significado que tem hoje a palavra, o ditador é um magistrado que pode ser ou designado pelos dois cônsules ou eleito pelo povo. Inicialmente, sua função foi ou dar conta de alguma emergência militar (como caso de Fabius cunctator ou "O contemporizador" durante a 2ª Guerra Púnica, diante de Aníbal) ou construir algum acordo entre as facções em luta, no quadro dos conflitos que marcavam a vida política da República. Mas desde o século 2º os ditadores sempre se dirigirão contra a plebe [66]. Esse traço tornar-se-á perfeitamente evidente na ditadura de Cornélio Sila, da qual Claudia Moatti trata no 3º capítulo de seu livro. No período que ela chama de um "momento silaniano" [67], porém, a autora observa que a ditadura de Sila foi perfeitamente legal, estabelecida nos termos de lei escrita.

Mas essa ditadura, marcada por atos cruéis, terríveis, contra cidadãos romanos e contra "aliados" indiferentemente, e que deixaram duradoura lembrança de horrores na memória dos romanos [68], é parte de um momento de autonomização do Estado [69] que se constitui então acima da sociedade política, para preservar os interesses dos mais ricos. Mas também esses optimates tiveram de se dobrar à mão pesada do ditador. A ditadura de Sila ultrapassou em amplidão e em poderes as ditaduras precedentes [70], precisamente porque tinha de estabelecer um poder acima das classes sociais, para impor a supremacia da elite senatorial [71]. Para criar o "ditador", que é um magistrado da República e, assim, para criar a "ditadura", promulgou-se uma lei de investidura [72], é bom nunca esquecer, que converteu o ditador, em tirano [73]. 

A partir daí, se entra num sistema no qual o "povo" perde de fato a soberania – que é então atribuída ao Senado. O Senado passa a ser o único que decide o que é lícito e o que não é, capaz de decidir quem é "subversivo" e quem não é. As magistraturas populares – como os tribunos da Plebe – murcham [74].

Os cidadãos romanos não foram os únicos a padecer sob essa ditadura, por uma espécie de legalização do estado de urgência que se traduziu no enfraquecimento da igualdade jurídica dos cidadãos [75]. Essa ditadura também transformou radicalmente, como Claudia Moatti o demonstra, as relações entre "romanos" e "italianos" [76]. 

De fato, a ditadura de Sila passa a mensagem que de é congruente com o que as elites senatoriais desejam: a res publica está unificada, não é mais resultado de conflitos. 

Aparece aí a figura do "cidadão de bem" – aquele que defende sem segundas intenções essa res publica fetichizada [77]. Compreende-se também por que essa "ditadura" era necessária para as elites, e, também, a torsão que a ditadura introduziu na história da República. Mediante a fetichização da res publica marca-se o triunfo das elites sobre o povo, mas, também, o congelamento das instituições republicanas as quais, já sem poder nutrir-se de conflitos, só se modificarão por via relativamente consensual.

A violência extrema desse período vem coroar a violência do Senado quando da Guerra Civil e antes, no episódio dos Gracos. Mas essa violência que perdurará, porque se torna o único elemento de regulação dos conflitos sociais, marca a extensão dos poderes do Senado também para o domínio militar, com a prática do Senatus Consulte Ultime,* mas também no domínio da suspensão da vigência das leis [78]. O período da ditadura de Sila e, em termos mais gerais, o período que vai do século 2º aC até o fim da República marca uma virada, tanto política como nas representações. (...) Mas mesmo assim persiste a continuidade. 

Aqui, entreguemos a palavra a Claudia Moatti: "A ideia de continuidade não é explicitada, e só é explorada quando surge algum problema de legitimidade política" [89]. Aqui, o elo que liga a legitimidade e a soberania é bem evidente [90]. 

Claudia Moatti constata que Augusto [assume o poder em janeiro de 27 aC] tem premente necessidade de legitimidade, e ele só consegue suprir essa necessidade ao retomar, ainda que de maneira formal, a ideia de que a soberania pertenceria ao povo, que a teria delegado a ele. (...)

Retornamos aqui à essa ideia de delegação. Frequentemente apresentamos os imperadores romanos como soberanos todo-poderosos. É esquecer depressa demais de onde lhes veio a soberania. Na lei de investidura de Vespasiano, por exemplo (69-79 dC), a Lex de imperio Vespasiani, a ratificação dos atos do imperador antes da investidura formal é declarada "como se tudo tivesse sido feito em nome do povo" [91]. Pode-se ver que a origem da soberania permanece no povo, ainda que o povo tenha delegado ao imperador o exercício daquela soberania. 

Vê-se bem evidentemente que há nessa lei de investidura uma cláusula discricionária que autoriza o imperador a agir "por fora da lei" em nome do interesse e da majestade do Estado. Mas pode-se também considerar que se trate de uma primeira formulação do estado de exceção. Por isso Paolo Frezza fala do "poder (potestas) novo e extraordinário" do imperador [92].

Bretone contudo insiste no significado profundo dessa cláusula discricionária, que pode ser a origem de um poder autocrático [93], e conclui: "a subordinação do soberano à ordem legal é voluntária, só a 'majestade' pode impor essa escolha como obrigação, ao tempo em que permanece livre" [94]. De fato, o imperador reúne aí, nas próprias mãos, tanto a potestas quanto a auctoritas [95]. A isso acrescenta oimperium, que antes fora privilégio dos magistrados republicanos. Seria de crer que assim se encerrava o debate – porque subordinação voluntária não é verdadeira subordinação. Mas Bretone escreve que "só a própria majestade do imperador levava-o a sentir como obrigação [os novos poderes]", o que obriga a pensar melhor. A frase pode sugerir que imperador que violasse leis existentes mas só para seu "bel prazer", sem considerar o interesse do Estado, perderia a "majestade" (maiesta) que acompanha o imperium. E nesse caso o assassinato se tornaria lícito, porque o "ditador" ter-se-ia convertido em "tirano".

Se se considera o grande número de imperadores que morreram assassinados ou foram forçados ao suicídio, vê-se que o imperador é um ditador, no sentido romano do termo; que pode portanto ultrapassar, se necessário, o limite da legalidade, sendo para o bem do Estado e do "povo", nos casos ditos de extremus necesitatis [96]. Mas esse poder não é "livre", como diz Bretone. Se não quiser expor-se a ser assassinado, o imperador terá de justificar o que fizer.

De fato, constata-se que de Augusto ao século 3º dC, há continuidade no uso dos termos da República [97]. Não se trata de simples ficção imperial, ainda que nas províncias cresça um sentimento monárquico contra o Senado romano [98], nem se explica por mera hipocrisia na fala do imperador. 

A referência à res publica é necessária para garantir a legitimidade do Imperador. O imperador tem um "mandato" do povo. Na verdade, o Imperador "pertence" à res publica, não o contrário. É o que diz a Histoire Auguste a propósito de Adriano: "sua missão era governar sabendo que a res publica era a coisa do povo [chose du peuple], não a dele" [99].

De volta ao nosso futuro?

Esse livro de Claudia Moatti nos mostra pois a evolução da representação da res publica, acompanhando a evolução que leva da República ao Império. Mas a autora mostra também que essa evolução não é produto só da força das ideias, mas, isso sim, de conflitos econômicos, políticos e sociais, conflitos alimentados pela degradação das estruturas agrárias e da concentração de riquezas, consequências da 2ª Guerra Púnica. Ao fazê-lo, a autora pinta também um quadro da transformação da ideia de soberania e suas consequências, particularmente sobre o controle dos magistrados. 

Essa modalidade de história intelectual, solidamente enraizada nos mais diferentes conflitos que agitam a Cidade é preciosa. Ela leva, nas palavras da própria Claudia Moatti, a repolitizar a história romana, assumindo o risco de anacronismo [100].

A vitória da concepção de Cícero para a res publica, vale observar, é anterior ao estabelecimento do Império. Concebida nos tumultos do fim da República, apresentada como defesa da República, e em especial nas obras de Cícero que nos chegaram como De re publicaDe officis e sobretudo as Philippiques, aquela concepção é parte da destruição da República. 

Pelo duplo movimento de fetichização da res publica e respectiva sacralização; e de reificação do povo, reduzido a entidade imaginária separado da própria realidade social, Cícero confirma o processo de despossessão da soberania. A res publica transformada em coisa do Senado, só faltava um passo para que virasse a coisa do imperador.

Mas nem Senado nem imperador, pelo menos até o século 3º, ultrapassariam o limite. O princípio do povo soberano será mantido, pelo menos na ordem do discurso [101]. Será preciso o Império pôr-se a caminhar na direção da cristandade, para que essa referência desapareça lentamente, e que a ideia da soberania perca o lugar para a ideia de um pacto entre Deus e o Imperador. Mas essa já é outra história…

As conclusões de Claudia Moatti estão bem sintetizadas no seguinte parágrafo, aqui citado literalmente:


"Aqueles que hoje definem a res publica como o governo que tem em vista o bem comum, não estão menos enredados nessas discussões que os senadores da época imperial. A ideologia é bem diferente também, conforme o comum dependa dos cidadãos, ou da cidade; conforme seja noção imposta, ou ideia em movimento. Em movimento, o bem comum pode ser definido como o resultado visível da ação conjugada de todos (…), como noção imposta torna-se princípio imutável, um universal mascarado, em nome do qual rejeitamos uma parte dos cidadãos, expulsos para fora da cidade" [102].


Nesse parágrafo, sem dúvida, com força certeira, ouvem-se ecos da França de hoje [e do Brasil-2016, do golpe com Senado, Câmara e STF-com-tudo (NTs)].



* Literalmente, "decreto final do Senado" (a expressão completa é "decreto final do Senado de Defesa da República") dava aos magistrados, sobretudo aos cônsules, poderes semiditatoriais para preservar o Estado, quando as circunstâncias da República Romana exigissem medidas extraordinárias (aqui, traduzido) [NTs].

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