sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Guerra econômica contra o Irã é guerra contra a integração da Eurásia, por Pepe Escobar

14/8/2018, Pepe Escobar, Asia Times



Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu

NOTA DOS TRADUTORES: Enquanto durar o golpe no Brasil, escreveremos "(B)RICS" (o Brasil entre parênteses), para fazer lembrar que desde 2/12/2015 o Brasil vive sob golpe. Ninguém deve pressupor que, por estarem presentes às reuniões dos (B)RICS, as autoridades brasileiras que lá apareçam tenham qualquer legítima representação democrática.





A histeria reina suprema depois que a primeira rodada de sanções dos EUA entrou em vigência novamente contra o Irã, semana passada. São vários os cenários de guerra, mas mesmo assim o aspecto chave da guerra econômica lançada pelo governo Trump tem passado despercebido: o Irã é peça central num tabuleiro de xadrez muito maior.

A ofensiva de sanções dos EUA, lançada depois da retirada unilateral de Washington do acordo nuclear iraniano, tem de ser interpretada como um gambito para avançar no Novo Grande Jogo, em cujo centro estão a Nova Rota da Seda da China – o mais importante projeto de infraestrutura, pode-se dizer, do século 21 – e a integração da Eurásia.

As manobras do governo Trump dão prova de o quanto a Nova Rota da Seda da China, ou Iniciativa Cinturão e Estrada (ICE), ameaça oestablishment norte-americano.

Integração eurasiana em ascensão 

A integração eurasiana está pauta em Astana, onde Rússia, Irã e Turquia decidem o destino da Síria, em ação coordenada com Damasco.

A profundidade estratégica do Irã na Síria do pós-guerra simplesmente não desaparecerá. O desafio de reconstruir a Síria será enfrentado, em grande parte, pelos aliados de Bashar al-Assad: China, Rússia e Irã.

Como eco da Antiga Rota da Seda, a Síria será configurada como importante nodo da ICE, chave para a integração da Eurásia.

Paralelamente, a parceria estratégica Rússia-China – da intersecção entre a ICE e a União Econômica Eurasiana (UEE) até a expansão da Organização de Cooperação de Xangai e a solidificação dos (B)RICS+, também ditos (B)RICS Plus – tem alto interesse na estabilidade do Irã.

A complexa interconexão do Irã com a Rússia (via a UEE e o Corredor Internacional de Transporte Norte-Sul) e com a China (via ICE e fornecimento de petróleo e gás) é ainda mais estreita que no caso da Síria nos últimos sete anos de guerra.

O Irã é essencial para Rússia-China, e de modo algum a parceria permitirá que prospere qualquer "ataque cirúrgico" – como tentado na Síria – ou, pior, uma guerra quente iniciada por Washington.

Pode-se argumentar que, com a recente abertura na direção do presidente Putin, o presidente Trump esteja tentando negociar alguma espécie de 'congelamento' na atual configuração – um [acordo] Sykes-Picot formatado para o século 21.

Mas assim se teria de assumir que o processo de tomada de decisões no governo dos EUA não seria ditado, ou não estaria cooptado pela gangue dos neoconservadores norte-americanos que pressionaram a favor da guerra de 2003 contra o Iraque.

Coreia do Norte 2?

Se a situação tornar-se vulcânica quando as sanções dos EUA contra o petróleo do Irã entrarem em vigência no início de novembro, é possível que o mundo veja-se diante do remix do cenário da Coreia do Norte, que vimos recentemente. Washington enviou simultaneamente três grupos de combate de porta-aviões para aterrorizar a Coreia do Norte. O golpe fracassou – e Trump acabou forçado a dialogar com Kim Jong-un.

Apesar do currículo dos EUA pelo mundo – ameaças sem fim de invadir a Venezuela, cujo único resultado tangível foi o ataque amadorístico com um drone, fracassado; 17 anos de guerra infindável no Afeganistão, com os Talibã até hoje tão inamovíveis como as montanhas  do Hindu Kush; a vitória dos "4+1" (Rússia, Síria, Irã, Iraque, plus Hezbollah) na perversa guerra por procuração dos EUA, na Síria — os neoconservadores norte-americanos berram e esperneiam a favor de os EUA atacarem o Irã.

Como com a Coreia do Norte, Rússia e China também enviarão sinais claríssimos de que o Irã está incluído em sua firmemente coesa esfera de influência eurasiana, e que qualquer ataque ao Irã será considerado ataque a toda a esfera eurasiana.

Aconteceram coisas até mais estranhas, mas é difícil que qualquer ator racional em Washington, Tel Aviv e Riad considere a possibilidade de ter Pequim  e Moscou — simultaneamente – como inimigos de morte.

Em todo o Sudoeste da Ásia ninguém tem qualquer dúvida de que a política oficial do governo Trump – e, de fato, de todo o Departamento de Estado – para o Irã é a 'mudança de regime'. Assim, doravante, antes de guerra quente, as novas regras do jogo indicam escalada na ciberguerra.

Do ponto de vista de Washington, em termos de retorno de investimentos, é uma barganha relativa: a ciberguerra mantém a parceria Rússia-China afastada de qualquer envolvimento direto, enquanto Washington escava mais fundo no colapso econômico do Irã, fortemente anunciado como iminente por funcionários do governo Trump.

O Ministério de Relações Exteriores da China não poderia ser mais explícito sobre o esforço dos EUA para reimpor sanções globais ao Irã. "A cooperação comercial entre China e Irã é transparente e aberta, razoável, justa e legal, e não viola nenhuma resolução do Conselho de Segurança da ONU" – disse ele.

É como um eco do que disse o Ministério de Relações Exteriores da Rússia sobre as sanções norte-americanas: "São exemplo claro de violação continuada pelos EUA da Resolução n. 2.231 do Conselho de Segurança da ONU e atropelam as normas da lei internacional."

Por seu lado, o presidente Trump foi explícito: nação que violar as sanções contra o Irã não negociará com os EUA.

Boa sorte com Turquia ou Qatar – completamente dependentes do Irã para a comida que comem, para uso do espaço aéreo civil e partilha na exploração do gás de Pars Sul. Isso, para nem falar de Rússia-China que apoiarão Teerã em todas as frentes.

Como não negociar com a China?

Os dados estão lançados. A não só continuará, mas ainda aumentará a quantidade de petróleo e gás comprados do Irã.

A indústria automobilística chinesa – atualmente com 10% do mercado iraniano – simplesmente ocupará todos os espaços, tão logo os franceses deixem o país. 50% das peças para automóveis importadas pelo Irã já são produzidas por empresas chinesas.

A Rússia, por sua vez, prometeu investir coisa de $50 bilhões no petróleo e no gás natural do Irã. Moscou sabe perfeitamente qual um possível passo seguinte do governo Trump: impor sanções a empresas russas que invistam no Irã.

Washington simplesmente não pode "não negociar" com a China. Toda a indústria da defesa dos EUA depende da China para obter terras raras. Desde os anos 1980s, multinacionais norte-americanas montaram suas cadeias de exportação a partir da China, com estímulo direto do governo dos EUA.

A União Europeia (UE), por sua vez, conta com um "Estatuto de Bloqueio" [Regulamento n. 2271/96 do Conselho Europeu, de 22 de Novembro de 1996, relativo à protecção contra os efeitos da aplicação extra-territorial de legislação adoptada por um país terceiro e das medidas nela baseadas ou dela resultantes, Conselho Europeu, port.)] – jamais usado, embora exista há mais de 20 anos – para proteger empresas europeias, a ponto de poder impor multas a empresas que se retirem do Irã por simples 'cautela'.

Em teoria, soa como legal e eficaz. Mas, como diplomatas da UE em Bruxelas disseram a Asia Times, há detalhes que tornam tudo diferente do que parece: abundam os vassalos e sátrapas delegados dos EUA em toda a UE, como é o caso das gigantes Total e Renault, as quais simplesmente ignorarão o Estatuto.

Enquanto isso, as palavras do ministro de Relações Exteriores do Irã Mohammad Javad Zarif, sobre o unilateralismo dos EUA – que o mundo está "enojado e cansado" dele – continuam a ecoar por todo o Sul Global.

Furacão mãe de todos os furacões financeiros 

Os que clamam por guerra com o Irã provavelmente não entendem que o cenário de pesadelo de se bloquear o tráfego, pelo Estreito de Ormuz/Golfo Persa – gargalo pelo qual passam 22 milhões de barris de petróleo por dia – representaria, no limite, a morte do petrodólar.

O Estreito de Ormuz pode ser definido como o calcanhar de Aquiles de toda a força econômica do Ocidente/EUA; o fechamento do Estreito detonaria o furação mãe de todos os furações no mercado quatrilhonário dos derivativos em dólar.

A menos que a China deixe de comprar energia do Irã, as sanções norte-americanas – como ferramenta de pressão geoeconômica – são, na essência, sem sentido.

Com certeza não, claro, para o "povo iraniano", com o qual tanto se preocupa o Departamento de Estado na Av. Beltway, Washington-DC, que vê crescer o sofrimento financeiro, ao lado do sentimento cada vez mais profundo de coesão nacional, contra ameaça externa.

China e Rússia já prometeram continuar a seguir o que foi acordado no JCPOA, e no acordo UE-3; afinal, o tratado multilateral é documento endossado pela ONU.

Pequim já informou Washington em termos bem claros, que continuará a negociar com o Irã. Assim sendo, a bola está no campo de Washington. O governo Trump que decida se sancionará a China por não suspender todos seus negócios com o Irã.

Não é prudente ameaçar a China – especialmente quando Pequim está em momento de irresistível ascensão histórica. Nehru ameaçou a China e perdeu fatia gorda da província de Arunachal Pradesh para o Grande Timoneiro Mao. Brezhnev ameaçou a China e enfrentou a ira do Exército de Libertação Popular às margens do Rio Ussuri.

A China pode separar, num minuto, os EUA e suas fontes de terras raras – o que seria catástrofe de segurança nacional para os EUA. É quando qualquer guerra comercial entra em território de real incandescência.*******

Nenhum comentário: