16/5/2017, Jacques Sapir, Russeurope, Hypotheses
O período atual está marcado por uma forte contradição. O 1º turno da eleição presidencial na França trouxe a vitória cultural das forças soberanistas. O 2º turno, uma derrota confirmada, das mesmas forças. A derrota nesse caso explica-se pela persistência dos mecanismos ideológicos de demonização da Frente Nacional. Mas os mesmos mecanismos foram reativados também pela incapacidade, muito visível na última semana, para articular com clareza um projeto coerente e, sobretudo, pela incapacidade de levar esse projeto, com dignidade, ao debate televisionado antes da votação. Essa derrota confirma tanto as limitações da candidata – sejam limitações ideológicas, políticas ou de organização –, como também confirma a divisão da corrente soberanista.
Recordemos os fatos: os soberanistas explicitamente alcançaram mais de 47% dos votos no 1º turno, se se somam os votos dados ao conjunto de candidatos que defendem posições ou teses soberanistas. Além desses, também se pode supor que exista um 'exército de reserva' de eleitores soberanistas entre os eleitores de François Fillon. Certo número desses apoios, inclusive entre os deputados, nunca fizeram segredo de sua adesão às teses soberanistas. É claro portanto queimplicitamente, o soberanismo já foi maioria no 1º turno. E em momento algum cedeu fosse o que fosse de suas posições, especialmente quanto ao euro. Mas no 2º turno essa maioria desfez-se. A oposição entre esses dois eventos, ambos indiscutíveis, traz à luz ao mesmo tempo a diversidade das posições soberanistas e as dificuldades para reuni-las.
A unidade impossível?
Michel Wieviorka acaba de publicar artigo interessante na página The Conversation no qual argumenta que esse fracasso é devido à separação do movimento soberanista em duas partes inconciliáveis.[1] De fato, essa análise parece evidente. Houve mínima transferência de votos entre os eleitores de Jean-Luc Mélenchon e Marine le Pen. Mas as causas dessa baixa transferência são estruturais, e essa é a tese de Wieviorka que entende que haja uma cultura política francesa que torna impossível a fusão desses eleitorados, ou essas causas deveriam ser buscadas, mais, na especial conjuntura dessa eleição?
Essa primeira pergunta leva a outra: o soberanismo é dual, como Wieviorka o subentende, como outros analistas, em particular Alexandre Devecchio, que discorreu sobre isso no programa, na Radio-Sputnik[2]? Ou a questão é mais complexa?
De fato, deve-se duvidar da binaridade das correntes soberanistas, tanto quanto se deve duvidar de que se tenham encarnado perfeitamente, em termos políticos, em correntes políticas precisas. Essa questão é crucialmente importante. Porque, se Michel Wieviorka estiver certo, nenhuma aliança é possível. E se, ao contrário, os maus resultados explicarem-se mais pelo contexto ideológico no qual se desenvolveu essa eleição de 2017, nesse caso a conciliação entre correntes soberanistas diferentes parece bem mais possível. Sobretudo, é possível pensar em separação radical dessas correntes? Ou, ao contrário, terão elas aspectos comuns? Isso implica voltar à diferença entre as encarnações políticas e às correntes soberanistas.
Essa é a análise que será desenvolvida aqui. Retomo uma parte da terminologia de Alexandre Devecchio, em especial a que concerne ao soberanismo social e ao soberanismo identitário. Mas sou o único responsável pela interpretação que dou a esses dois termos.
Soberania e soberanismos
Se a soberania é uma e indivisível (como definida nos textos constitucionais[3]), o soberanismo é atravessado por muitas correntes e diferentes sensibilidades. Essas correntes ou sensibilidades traduzem aproximações da reivindicação soberanista que são naturalmente diferentes conforme pessoas diferentes, mas também conforme os contextos sociais e familiares.
O primeiro é o que se pode chamar de um soberanismo social. Enraíza-se na constatação de que todo progresso social implica que a comunidade nacional, o que chamamos "povo", seja soberano. Compreende que não pode haver progresso social sem economia voltada para os muitos, não para aumentar a riqueza dos mais ricos, como se vê acontecer hoje. O soberanismo social analisa esse estado de fato como o produto de regras da mundialização e da globalização financeira, das quais a moeda única, o euro, é o ponto de articulação dentro da União Europeia. Eis porque, analiticamente e logicamente, os soberanistas sociais erguem-se contra esse estado de fato e exigem "em nome do povo", e mais precisamente em nome dos trabalhadores, que haja empregos onde os empregos tenham sido extintos, o retorno a uma soberania monetária inscrita no retorno global de uma soberania política. O soberanismo social faz a conexão entre a perda progressiva da soberania e a destruição, real ou programada, das principais conquistas sociais.
A segunda corrente é o soberanismo tradicional, que se pode chamar de soberanismo político. Suas raízes avançam até o fundo da história da França, nutridas dos textos de Jean Bodin. Sua preocupação essencial é com o Estado soberano como representante do povo (depois de 1789). Essa corrente recusa a redução da democracia exclusivamente a uma deliberação entre candidatos. Para esse soberanismo, a democracia implica a existência de um quadro espacial dentro do qual se verifica a possibilidade de decidir, mas também a responsabilidade dessas decisões.[4]
Essa corrente analisa o processo da União Europeia não como processo de delegação da soberania, mas como um processo, na realidade, de cessão da soberania. Ora, nenhuma cessa da soberania poderá jamais existir. E deduz-se daí a natureza profundamente antidemocrática do processo europeu. Essa natureza revelou-se de maneira explícita no tratamento que as instituições da União Europeia e da Eurozona a países como Chipre ou como a Grécia. Esse soberanismo político, que foi encarnado por Philippe Seguin ou Marie-France Garaud, expressou-se com força na Grã-Bretanha com o referendo sobre o "Brexit". Esse soberanismo político e logicamente e naturalmente aliado do soberanismo social.
A terceira corrente encarna o que se pode chamar de um soberanismo identitário. Partindo de uma reação espontânea face ao questionamento da cultura, seja por sua dimensão "cultural" em sentido vulgar, seja nas suas dimensões política e de culto, é concepção ao mesmo tempo muito viva e muito forte (característica dos movimentos populares espontâneos), mas é também bem menos estruturada que as duas primeiras correntes. Além do mais, o grande historiador francês Fernand Braudel escreveu sobre esse assunto um livro belíssimo, L’Identité de la France.[5] Ali, Braudel mostra como a identidade foi construída pouco a pouco. Não há pois nada de escandaloso em a França reclamar uma identidade, e, desse ponto de vista, a sensibilidade soberanista identitária é perfeitamente admissível.
Se se pode compreender a reação que o funda, convém não esquecer que, sim, o soberanismo identitário pode derivar na direção de teses xenófobas, mesmo racistas, e daí a possível porosidade com as teses de grupos definidos como "identitários". Mas mesmo assim a corrente se propõe questões que na realidade são as mesmas do soberanismo político, em particular a questão das necessárias fronteiras. Assim, impõe ao conjunto do movimento soberanista, em repercussão de suas derivas potenciais, uma reflexão específica sobre a natureza do "povo", e mostra o impasse que se cria com definição etnocêntrica ou religiosa.
Pluralidade das encarnações do soberanismo
Cada uma dessas sensibilidades ou dessas correntes contribui para a unidade do movimento soberanista. São frequentemente o ponto de entrada ao soberanismo, e pode-se tomar consciência da importância da centralidade da questão da soberania a partir dessas diferentes sensibilidades. Mas somos conduzidos, se se analisam logicamente as raízes dessa tomada de consciência, a considerar a soberania no seu conjunto, e o soberanismo como, movimento que unifica, mas também ultrapassa as três correntes.
Essas diferentes correntes, convém destacar aqui, não se incorporam em forças políticas diferentes, as quais – todas elas – partilham, embora em proporções diversas, as diferentes sensibilidades do soberanismo. O problema não é pois a compatibilidade organizacional das correntes, mas a compatibilidade política e filosófica que haja entre elas.
O movimento "France Insoumise" [França Insubmissa] de Jean-Luc Mélenchon encarna, certamente, o soberanismo social. Mas é muito sensível – a evolução de Jean-Luc Mélenchon é prova disso – ao soberanismo político, e isso depois dos eventos da Grécia, em julho de 2015, que deixaram traços profundos. Não está isento sequer de uma forma de soberanismo identitário, como se pôde ver no comício de Marselha, na medida em que marca uma vontade de afirmar a cultura política francesa, com suas regras e laicidade, frente às derivas comunitaristas. É esse o ponto, aliás, que a "gôche" [pejorativo para "esquerda"] tradicional, que vai hoje do P "S" ["Socialista"] ou do que resta dele, ao Partido Comunista Francês, critica em Mélenchon.
O partido de Nicolas Dupont-Aignan encarnou, no início, essencialmente o soberanismo político. É herdeiro da posição de um Séguin. Está aberto, por consequência, ao soberanismo social mesmo que, por escolha política, tenha recuado na questão do euro. Esse recuo, que se podia compreender no posicionamento tático de alguma pequena formação, teve contudo consequências bem mais graves sobre a coerência do discurso de Marine le Pen nos últimos dias da campanha. É portador também de elementos do soberanismo identitário, ainda que sempre se tenha oposto, firmemente e ferozmente, a toda e qualquer deriva racista, dito seja a favor dela.
Na Frente Nacional, o soberanismo identitário foi constitutivo no nascimento dessa formação e, isso, nas suas formas mais extremas. Se esse partido jamais chegou a ser "partido fascista", e quem insista em usar essa expressão a torto e a direito bem faria se relesse a história, mesmo assim foi, na origem, partido racista e xenófobo. Mas já há muitos anos vem levando em consideração o soberanismo social e o soberanismo político. O movimento de passar a levar em conta essas duas outras correntes levou a uma marginalização progressiva dos temas iniciais. As teses puramente identitárias têm sido pelo menos parcialmente rejeitadas nesse tipo de formação. Mas não se pode dizer que a 'muda', nesse caso, já esteja completa.
Nenhuma formação política portanto encarna totalmente e unicamente uma só das correntes do soberanismo. Mas cada uma das formações políticas tem também sua própria história, e a articulação particular das sensibilidades soberanistas construiu uma cultura política de organização específica em cada caso. A importância dessa cultura exprime-se no posicionamento político particular de cada formação, mas também em reflexos muitas vezes epidérmicos que podem separar radicalmente os militantes. Todas as organizações tendem a desenvolver um "espírito de partido", que se traduz nos fatos por uma incapacidade para escutar o discurso do "outro", e que pode derivar num sectarismo imbecil. Mas também há divergências bem reais. E algumas dessas podem justificar um tipo de rejeição que pode pôr fim ao debate e impedir qualquer contato.
As causas da divisão
A vitória cultural que o soberanismo alcançou no 1º turno não chegou portanto a ser traduzida em termos políticos. Por isso, o soberanismo foi politicamente derrotado. Os responsáveis pelas diferentes organizações e movimentos políticos nos quais se encarna o soberanismo sabem bem disso. Por que não procuram a união?
Uma primeira resposta está no sonho de transcrescimento de cada um e de todos os movimentos, sonho acalentado por todos os lados. Cada um vê seu próprio movimento como 'escolhido' para reunir sob o próprio e mesmo teto todos os soberanistas. Mas é mais ilusão, que sonho; no pior dos casos, traz em si o pesadelo de um autofechamento sectário, como nas seitas persuadidas, cada uma, de que seriam as únicas portadoras da "verdade".
Uma segunda resposta está em hábitos adquiridos, nas práticas cotidianas, que tornam mais fácil ficar cada um no seu canto e proferir excomunhões, jogando a carta da demonização, fugindo de enfrentar debate real. Mas o debate é possível? É legítimo? Aqui é preciso compreender a absoluta impossibilidade, o interdito absoluto, que acomete partido que defenda teses racistas. E foi esse o caso da Frente Nacional, quando nasceu. Mas a mudança é hoje também incontestável. A questão portanto é onde pôr o cursor. É profundamente contraproducente pretender que um partido seja "antirrepublicano", se dá inúmeros sinais de que aceita as regras de funcionamento da República. Mas é importante saber onde fica o limite e, sobretudo, se uma organização posiciona-se firmemente bem fora desses limites, ou evolui em relação ao limite. Porque a questão do racismo não é a única que implica interdição absoluta, o mesmo vale para a questão do comunitarismo. Muito claramente, é impossível debate organizado, seja com quem defenda ponto de vista racista, seja com quem defenda ponto de vista comunitarista. Se se quer pensar um espaço comum para todos os soberanistas, é necessária clareza absoluta sobre esses dois pontos.
Desse ponto de vista, a existência de um espaço de debate é ao mesmo tempo um modo de testar e verificar esse limite, mas pode também se transformar em instrumento que incite um partido a avançar na relação com o próprio limite Para obter isso, não é preciso que o debate seja explícito e aconteça em algum campo comum; o debate pode, por algum tempo, permanecer no domínio do implícito. De fato, se a Frente Nacional evoluiu em relação às suas teses originais, a "França Insubmissa" de Jean-Luc Mélenchon passou, ela também, por uma inflexão na questão da imigração (e da integração) e adotou posição muito mais realista. É sinal seguro de que aconteceu um debate implícito. Mas é possível que um debate explícito tivesse permitido esclarecer melhor as posições de uns e outros.
Uma terceira resposta reside então na vontade de conduzir a outra formação no campo completo de todas as suas posições. Aí estamos mais uma vez diante de uma "doença infantil" das organizações: a incapacidade para reconhecer a legitimidade das divergências. Não é necessário que as organizações adotem o mesmo programa, que levem o mesmo discurso, para que possam cooperar e proceder por exemplo a desistências no caso de eleições. Mas é imperativo que se saiba o que brota da divergência legítima e o que brota do interdito. A questão do racismo e além dela também a definição do comunitarismo, são questões que brotam do interdito. Vale dizer que o soberanismo opõe-se radicalmente a essas duas ideologias – à que quer fundamentar a comunidade nacional em uma ou outra raça, e à que quer dividir a grande comunidade nacional em comunidades menores, separadas e diferentes entre elas. Assim como é imperativo recusar todo e qualquer racismo, assim também é imperativo recusar todo e qualquer comunitarismo. Aí está a essência, pode-se dizer, da coerência soberanista.
As condições da unidade
Todos conhecemos o dito, mas nunca foi mais atual que hoje: "a história nos morde a nuca". É citação extraída de um livro escrito por Daniel Bensaïd, militante e filósofo trotskista, morto em 2010 e Henri Weber.[6] A frase não faz má figura aqui, em texto sobre o soberanismo. Poucos sabem, mas Bensaïd, que conheci e com o qual tive polêmica importante (sobre a natureza da URSS) há muito tempo, é autor também de um livro sobre Joana d'Arc.[7]
Em entrevista pouco antes de morrer, Bensaïd voltou ao tema Joana d’Arc e precisou o que tanto o interessara: "Joana d’Arc esboça a ideia nacional numa época em que a nação não tem realidade nas tradições dinásticas. Como germina, nas franjas de um reino em farrapos, esse esboço popular de uma ideia nacional?".[8] Magnífica questão. E a questão que ali se propunha é de fato a questão do duplo movimento de constituição da Nação e do Povo. E essa questão está na base da constituição do movimento soberanista.
Se, portanto, não queremos abraçar um governo de uma minoria, e é preciso lembrar aqui que as teses europeístas sãominoritárias na França, é preciso encontrar uma solução que una ao mesmo tempo filosoficamente as três correntes do soberanismo e que permita politicamente que as formações políticas nas quais se encarna esse soberanismo cooperem na arena particular do combate político. Sem isso, os soberanistas, ainda que majoritários, serão sempre derrotados. E que ninguém duvide da vontade de nossos adversários, que dispõem de meios poderosos, sobretudo em termos de imprensa e mídias em geral, e que tratarão de demonizar uns ou outros, para manter os franceses presos dentro da armadilha que levou à eleição de Emmanuel Macron.
Essa solução passa pela construção de um espaço de debate, um espaço de controvérsia, que permita que se construam os contatos necessários para desarmar progressivamente os reflexos sectários. Esse espaço poderá incluir acordos de desistência ou, pelo menos, pactos de não agressão. Mas a construção de tal espaço exige também que tenhamos perfeitamente claro o imperativo de recusar todo o racismo e todo o comunitarismo. É condição absoluta para que esse espaço exista e tenha eficácia.*****
[1] WIEVIORKA M., "Deux populismes valent mieux qu’un!" [Dois populismos valem mais que um], nota publicada dia 14/5/2017, emhttps://theconversation.com/ deux-populismes-valent-mieux- quun-77666
[2] Ver "Chroniques de Jacques Sapir" na Radio-Sputnik com Alexandre Devecchio e Jacques Nikonoff. O debate está em https://fr.sputniknews.com/ radio_sapir/ 201705111031344230-france- spectre-politique- recomposition/
[4] S. BENHABIB, "Deliberative Rationality and Models of Democratic Legitimacy", in Constellations, vol. I, n°1/abril 1994.
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